UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Monólogo de Orfeu


Mulher mais adorada!
Agora que não estás,
 deixa que rompa o meu peito em soluços!
 Te enrustiste em minha vida;
 E cada hora que passa é mais porque te amar. 
 A hora derrama o seu óleo de amor, em mim, amada...
E sabes de uma coisa?

Cada vez que o sofrimento vem,
 essa saudade de estar perto, se longe,
 ou estar mais perto, se perto,
 - que é que eu sei!
 Essa agonia de ver fraco, o peito extravasado,
o mel correndo;

Essa incapacidade de me sentir mais eu, Orfeu;
 tudo isso que é bem capaz de confundir o espírito de um
  homem  
- nada disso tem importância
quando tu chegas com essa charla antiga,
esse contentamento, essa harmonia, esse corpo!
 E me falas essas coisas que me dão essa força, essa coragem,
  
Esse orgulho de rei.
 Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim!
 Sem ti sou nada sou coisa sem razão, jogada,
 sou pedra rolada.
 Orfeu menos Eurídice...
Coisa incompreensível!
 A existência sem ti é como olhar para um relógio
só com o ponteiro dos minutos.
 Tu és a hora, és o que dá sentido e direção ao tempo,
 minha amiga mais querida! 
 Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada,
Milhões amada!
 Ah! criatura! Quem poderia pensar que Orfeu:
 Orfeu cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor despetala as mulheres
 - que ele, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco,
Vai teu caminho que eu vou te seguindo no pensamento
 e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia para os braços sem fim do teu
  amigo!
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que eu estarei contigo! 

(Autor: Vinícius de Moraes)

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