UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A Fé em Deus



Quase ao peso do corpo indiferente,
absorta em Quem, perdoando,
 a dor acalma,
verga-se sobre os joelhos suavemente,
apoiando-se numa e noutra palma.

Dolorosa exaustão, celeste calma,
vê-se difusa no seu todo... A mente,
porém, volvida para Deus somente,
refulge ao sempiterno raio d'alma.

Como que diz: se todo o bem me engana
e se, ao vislumbre de melhor estado,
sinto fugir-me a vida desumana.

Senhor, confiante, ao seu regaço ameno
recorre o meu espírito, ancorado
num grande afeto que não é terreno.

(Autor: Giuseppe Giusti -Tradução de C. Tavares Bastos)

Sonhos no Crespúsculo

Sonhos no crepúsculo,
Apenas sonhos encerrando o dia,
Retornando-o com tal desfecho,
Aos tons cinza, escurecidos,
Às coisas fundas e longínquas
Do território dos sonhos.

Sonhos, apenas sonhos no crepúsculo,
Apenas as rotas imagens lembradas
Dos tempos idos, quando o ocaso de cada dia
Escrevia em prantos as perdas da afeição.

Lágrimas e perdas e sonhos desfeitos
Talvez acolham teu coração
ao anoitecer.

(Autor: Carl Sandburg - Tradução de Fernando Campanella)

Colheita


Confiando ao vento minha chama clara,
Que corre o espaço profundo colhendo doçuras.
Sonhar é preciso-gratuito em qualquer lugar,
Mas há que saber trabalhar a quimera,
Acordar ação em hora certeira,
Entender a magia e os limites do tempo.
Sonho é semente de horizonte:
Pede plantio, trabalho, espera.

(Autora: Stella de Sanctis)

Música Surda


Como num louco mar, tudo naufraga.
A luz do mundo é como a de um farol
Na névoa. E a vida assim é coisa vaga.

O tempo se desfaz em cinza fria,
E da ampulheta milenar do sol
Escorre em poeira a luz de mais um dia.

Cego, surdo, mortal encantamento.
A luz do mundo é como a de um farol...
Oh, paisagem do imenso esquecimento.


(Autor: Dante Milano)

A Tarde


A tarde dá a largada.
No vai, não vai me convida
com uma carona certa
a fazer parte da sala,
abastecer a coragem
para aceitar de bom grado
a companhia das sombras.

A mesma tarde registra
as vibrações do silêncio
com um tom de telefone,
de vozes de vendedores,
e de grunhidos dos cães,
unidos numa canção.

Já no fim a tarde leva
a sua melancolia
e a palmeira que balança
com jeito de bandeirada
avisa tão sutilmente
que a noite já chegou.

(Autora: Rosa Clement)

Meditação


A gente começa a amar
Por simples curiosidade,
Por ter lido num olhar
Certa possibilidade.

E como, no fundo, a gente
Se quer muito bem,
Ama quem a ama somente
Pelo gosto igual que tem.

Pelo amor de amar começa
A repartir dor por dor.
E se habitua depressa
A trocar frases de amor.

E, sem pensar vai falando
De novo as que já falou...
E então continua amando
Só porque já começou.

(Autor: Paul Geraldy -Tradução de Guilherme de Almeida)

A Concha


Escondi-me numa concha, no fundo do mar,
mas esqueci-me em qual.

Cotidianamente desço às profundezas
e côo o mar por entre os dedos
a ver se dou por mim.

Às vezes penso
que fui comido por um peixe gigante
e eu procuro por toda a parte
para o ajudar a engolir-me por completo.

O fundo do mar me atrai e espanta,
com os seus milhões de conchas
semelhantes.

ah, eu estou numa delas
mas não sei em qual.

Quantas vezes fui diretamente a uma conha
dizendo : "Este sou eu".
Quando abria a concha
Estava vazia.

(Autor: Marin Sorescu - Tradução de Luciano Maia)

Eterna Tarde

A tarde vai morrer, calma como uma santa,
num êxtase de luz infinito e divino.
Há nas luzes do céu qualquer coisa que canta,
com músicas de cor, a tristeza de um hino.

Tudo, em torno de nós, se esbate e se quebranta.
Em nossos corações, como um dobre de sino,
e esperança agoniza; e a alma, triste, levanta
suas trêmulas mãos para o altar do destino.

Não é somente a tarde, a eterna moribunda,
que vai morrer, e espalha esta mágoa profunda
no nosso olhar, nas nossas mãos, na nossa voz...

É uma outra tarde — que nunca há de ser aurora
como a do céu será amanhã — que morre agora,
triste, dentro de nós...

(Autor: Alceu Wamosy)

Espelho


Do outro lado do espelho existe tanto
-rosto impassível – quando me imagino,
que o mito da existência desencanto
compondo silencioso o meu destino.

Do outro lado do espelho escuto o canto
que é um eco da cantiga do menino.
E a lâmina entre nós cai como um manto
que isola a sombra de seu figurino.

Mas através do vidro – vã imagem –
percebo a solidez do corpo, a vida,
nos olhos transbordantes de paisagem.

Existimos à parte, independentes,
e a gargalhada que nos intimda
nem sequer utiliza os mesmos dentes.

(Autor: Lago Burnett)

Fundo do Mar


Fundo do mar
Quero ver
o fundo do mar
esse lugar
de onde se desprendem as ondas
e se arrancam
os olhos aos corais
e onde a morte beija
o lívido rosto dos afogados

Quero ver
esse lugar
onde se não vê
para que
sem disfarce
a minha luz se revele
e nesse mundo
descubra a que mundo pertenço

(Autora: Mia Couto)