UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

sábado, 30 de junho de 2012

Às Vezes



Às vezes tenho idéias felizes,
Idéias subitamente felizes, em idéias
E nas palavras em que 

naturalmente se despegam...

Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? 

Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo 

apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer

 o que nós aqui traçamos?...

(Autor: Álvaro de Campos)

Adeus, Meus Sonhos!



Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!

Misérrimo! Votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus?!... Morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!

(Autor: Álvares de Azevedo)

Alguém Sabe


Você sabe como é
Estar tão só
Que a escuridão e a luz
Se misturam?
Onde as orações caem
No silêncio -

E a ausência de resposta
Penetra sua alma.
Em meio a uma multidão,
Mas completamente sozinho.
Num mundo frio
Que reclama você
Mas depois o empurra
No momento em que você vira as costas.
Onde ninguém entende
O seu passado.

Quando as risadas cortam sua pele
E pregam sua dor na madeira crua.
Quando lágrimas salgadas caem
Para curar a Terra quebrada.
Um amor quebrantado.
Você sabe como é isto?
Alguém sabe.

(Autora: Nina Koolik)

Texto de Consulta


A página branca indicará o discurso
Ou a supressão do discurso?
A página branca aumenta a coisa
Ou ainda diminui o mínimo?
O poema é o texto? O poeta?
O poema é o texto + o poeta?
O texto é o contexto do poeta
Ou o poeta é o contexto do texto?
O texto visível é o texto total
O antetexto o antitexto
Ou as ruínas do texto?
O texto abole
Cria
Ou restaura?

(Autor: Murilo Mendes)

Em Cada Sentimento Meu


 Em cada sentimento meu...
Tem um espírito ateu...
E uma alma reencarnada...
Um orgulho plebeu...
E uma nobreza calada...
Uma certeza nítida...

Em eterna dúvida...
Um cruel bandido...
E um anjo perdido...
Um livro aberto...
E um segredo guardado...
Um futuro incerto...
Num instante passado...
Um destino certo...
E um projeto abandonado...
Em cada sentimento meu...
Tem um sentido...
E um rumo inexistente...
Um desejo contido...
E um medo persistente...
Uma vontade que desiste...
E uma esperança que existe...
Um desencanto...
E um contentamento...
Um amigo santo...
E um demônio atento...
Uma inteligência sólida...
E ingenuidade...
Uma demência mórbida...

E serenidade...
Em cada sentimento meu...
Tem uma contradição...
E uma lógica sem chão...
Um desânimo juvenil...
E um desabafo senil...
Uma harmonia...
Em confusão...
Uma agonia...
E uma razão...
Um colapso vulcânico...
E a calma de um lago...
Um pânico...
E um afago...
Um verso doce e amargo...
Que se intrometeu...
Em cada sentimento meu...

(Autor: Roger Jones)

Esperança



Só a leve esperança em toda a vida
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos,
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim; mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos,
E nunca a pomos onde nós estamos.

(Autor: Vicente de Carvalho)

Ser Poeta



Ser poeta é ter em si o sol resplandecente
A aurora, o crepúsculo e a noite enluarada

A montanha, o mar, a chuva, a estrela cadente
E a tudo isso amar com a alma apaixonada.

É viver cheio de fé e mil sonhos de esplendores
Cultivar a fantasia nas sementes da fria realidade
Ter o perfume do jasmim e as asas dos condores
No mundo ver belezas e de tudo ter saudade.

É olhar para o horizonte e acreditar no infinito
Descrever lindas manhãs e também tardes sombrias
Embelecer esses contrastes com seu estro, 

com seu grito.

E quando se apaixona é um oceano imenso de ternura
Colocando sua musa em suas noites e seus dias
Em constante desejar... e exaltar – lhe a formosura.

(Autor: Newton Fernandes)

Transforma-se o amador na cousa amada



Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está ligada.

Mas esta linda e pura semidéia,
que, como um acidente em seu sujeito,
assim como a alma minha se conforma,

está no pensamento como idéia:
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma.

(Autor: Luís Vaz de Camões)

Museu


Espadas frias, nítidas espadas,
duras viseiras já sem perspectiva,
cetro sem mãos, coroa já não viva
de cabeças em sangue naufragadas;

anéis de demorada narrativa,
eques sem falas, trompas sem caçadas,
pêndulos de horas não mais escutadas,
espelhos de memória fugitiva;

ouro e prata, turquesas e granadas,
que é da presença passageira e esquiva
das heranças dos poetas, malogradas:

a estrela, o passarinho, a sensitiva,
a água que nunca volta, as bem-amadas,
a saudade de Deus, vaga e inativa...?

(Autora: Cecília Meireles)

Canto de Agonia



Agonia de amor, agonia bendita!
-Misto de infinita mágoa e de crença infinita.
Nos desertos da Vida uma estrela fulgura
E o Viajeiro do Amor, vendo-a, triste, murmura:
-Que eu nunca chore assim! 
Que eu nunca chore como
Chorei, ontem, a sós, num volutuoso assomo,
Numa prece de amor, numa delícia infinda,
Delícia que ainda gozo, oração, prece que ainda
Entre saudades rezo, e entre sorrisos e entre
Mágoas soluço, até que esta dor se concentre
No âmago de meu peito e de minha saudade.
Amor, escuridão e eterna claridade...
-Calor que hoje me alenta 

e há de matar-me em breve,
Frio que me assassina, amor e frio, neve,
Neve que me embala como um berço divino,
Neve da minha dor, neve do meu destino!
E eu aqui a chorar nesta noite tão fria!
Agonia, agonia, agonia, agonia!
-Diz e morre-lhe a voz, e cansado e morrendo
O Viajeiro vai, e vê a luz e vendo
Uma sombra que passa, uma nuvem que corre,
Caminha e vai, o louco, abraça a sombra e... morre!
E a alma se lhe dilui na amplidão infinita...
Agonia de amar, agonia bendita!

(Autor: Augusto dos Anjos) 

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Saudade



Belos amores perdidos,
Muito fiz eu com perder-vos;
Deixar-vos, sim: esquecer-vos
Fora demais, não o fiz.

Tudo se arranca do seio,
- Amor, desejo, esperança...
Só não se arranca a lembrança
De quando se foi feliz.

Roseira cheia de rosas,
Roseira cheia de espinhos,
Que eu deixei pelos caminhos,
Aberta em flor, e parti:

Por me não perder, perdi-te:
Mas mal posso assegurar-me,
- Com te perder e ganhar-me,
Se ganhei, ou se perdi…

(Autor: Vicente de Carvalho)

Retrospecto



Vinte e seis anos, trinta amores: trinta
vezes a alma de sonhos fatigada.

e, ao fim de tudo, como ao fim de cada
amor, a alma de amor sempre faminta!

Ó mocidade que foges! brada
aos meus ouvidos teu futuro, e pinta
aos meus olhos mortais, com toda a tinta,
os remorsos da vida dissipada!

Derramo os olhos por mim mesmo... E, nesta
muda consulta ao coração cansado,
que é que vejo? que sinto? que me resta?

Nada: ao fim do caminho percorrido,
o ódio de trinta vezes ter jurado
e o horror de trinta vezes ter mentido!

(Autor: Humberto de Campos)