UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Canção




No desequilíbrio dos mares,
as proas giram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.
Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.
Quando as ondas te carregaram
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.
Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.
E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro destas águas sem fim.

(Autora: Cecília Meireles)

Perguntarão pela Tua Alma



Perguntarão pela tua alma
a alma que é ternura,
bondade,
tristeza,
amor.
Mas tu mostrarás a
alma do teu vôo.
Livre por entre os mundos...
E eles compreenderão
que a alma pesa.
Que é um segundo corpo,
e mais amargo,
porque não se pode mostrar,
porque não se pode ver...

(Autora: Cecília Meireles)

Eu quero amar perdidamente





Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
(Autora: Florbela Espanca)

Nel mezzo del camim*



Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
e a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada da vida
longos anos, presa a minha a tua mao,
a vista deslumbrada tive
da luz que no teu lhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida
nem o pranto os teus olhos umedece,
nem te comove a dor da despedida.

E eu solitário, volto a face e tremo,
vendo o teu vulto que desaparece
na extrema curva do caminho extremo. 

(Autor: Olavo Bilac)

______________
* Este soneto chama atenção pelo título, pois dialoga com A Divina Comédia, de Dante Alighieri, através da citação (uma forma de marcar a intertextualidade) do primeiro verso desta obra.

Nel mezzo del camin de nostra vita
mi retrovai por una selva oscura:
ché la viritta via era smarrita

(A meio caminho de nossa vida
fui me encontrar em uma selva escura:
estava a reta a minha via perdida.)

Quanto...



Quantos mistérios escondes
Atrás dos olhos atraentes;
Quantas delícias ocultas
Em teus lábios sorridentes;
Quantas coisas não respondes
Às minhas questões incultas.
Quanto pareces fascinante
Aos meus olhos enamorados;
Quanto conheces do medo
Em meus lábios apaixonados;
Quanto pareces brilhante
Atrás do grande segredo...
Quanto escondes do céu
Na palavra cautelosa;
Quanto descubro de ti
Quando sorris maravilhosa,
Com sabor de sol e mel;
E de vida que eu não vivi...
Quanto desvendas de mim,
Enquanto te cobres desenvolta,
Quanto me sabes descobrir,
Dessa forma tão leve e solta
Que eu me entrego assim;
Sem forças para reagir...
Quantos sorrisos terás
Sobre as lágrimas choradas,
Quantas perguntas terei
Sobre as respostas negadas,
Quanto de mim deixarás
Do tudo que eu já te amei...

(Autor: José Carlos Rodrigues)

Adeus



Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou se preferes, a minha boca nos teus olhos,
carregada de flor e dos teus dedos;

como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve, e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.

Como se a noite viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde o teu corpo principia.

Como se houvesse nuvens sobre nuvens,
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.

(Autor: Eugénio de Andrade)

Labirintos


Há um momento
em que os lábios espantam
o desejo das horas, e traduzem
a incerteza da vida.
Os olhos, vagos,
por sob as pálpebras,
escondem a dormente tristeza
dos trilhos não viajados.
E as mãos,
atadas pelo silêncio do dia,
guardam as sombras dos gestos
no labirinto dos pensamentos
não revelados.
Há um momento
em que o mundo é sem tempo...
e tudo é por demais irreal
para que se cogite dos sonhos!

(Autor: Francisco Lins do Rego Santos)

Anjo das Horas




A ti , meu Anjo , amor dos meus encantos,
A ti que velas horas dos meus dias,
A ti que trazes luz aos meus espantos,
Eu agradeço o fim das agonias.

As agonias que rondaram cantos,
Os mais escuros de paredes frias,
Quando era eu um carrilhão de prantos,
E tu - de perto - só me percebias.

Sem que eu chamasse foste os acalantos
Das minhas noites tristes e vazias.
E eu que chamava por todos os santos,

Não via a ti que tanto me sorrias.
A ti, meu Anjo , amor dos meus encantos,
Eu agradeço os meus presentes dias.

(Autora: Silvia Schmidt)