UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Mito para Escorpião – Orfeu e Eurídice

Boris Vallejo - Eurydice

“Os meus dias são mais velozes do que a lançadeira do tecelão, e chegam ao fim sem esperança. Lembra-te de que minha vida é um sopro; os meus olhos não tornarão a ver o bem. Os olhos dos que agora me vêem não me verão mais; os teus olhos estarão sobre mim, mas não serei mais. Tal como a nuvem se desfaz e some, aquele que desce à sepultura nunca tornará a subir. Nunca mais tornará à sua casa, nem o seu lugar o conhecerá mais. Por isso não reprimirei a minha boca; falarei na angústia do meu espírito, queixar-me-ei na amargura da minha alma.”  (Jô 7:6-11)

John William Waterhouse - Nymphs Finding the Head of OrpheusA descida ao subterrâneo, seja ela real, imaginativa, mitológica ou simplesmente psicológica, é um dos temas mais associados ao oitavo signo, Escorpião. É possível encontrar diversas narrativas de personagens que, em algum momento de suas histórias, descem ao submundo com objetivos diversos. Hércules desceu ao Hades para aprisionar Cérbero, e esse foi o último de seus Doze Trabalhos. Perséfone foi raptada por Hades, e desceu ao Mundo dos Mortos para se tornar sua Rainha, após comer algumas sementes de romã. Psiquê foi obrigada por Afrodite a descer ao Inferno para pedir um pouco da beleza de Perséfone. Nergal desce ao Reino de Ereshkigal para desculpar-se por uma ofensa feita a uma representante sua, mas acaba apaixonando-se pela deusa e tornando-se o Senhor dos Infernos ao seu lado. Ishtar, cheia de dor pela perda de seu amado Tammuz, desce a Irkalla, a Casa da Escuridão, para resgatá-lo do domínio da Rainha dos Mortos, sua irmã Ereshkigal. Osíris governa o Mundo dos Mortos após ter sido assassinado por Seth e ressuscitado por Ísis. No livro O Senhor dos Anéis, a Sociedade do Anel enfrenta duras provas nas cavernas de Moria, onde enfrenta uma horda de orcs e um terrível Balrog (demônio das profundezas) enfurecido. No filme Matrix Reloaded o personagem Neo, o Escolhido, tem um encontro em um restaurante com Merovíngio e sua esposa Perséfone (coincidência ?), dois programas de computador sedentos de poder e amor, respectivamente; após exigir de Neo um beijo apaixonado, Perséfone o leva por um caminho subterrâneo até o Chaveiro, outro personagem de fundamental importância para a história. Nessa quarta temporada da série Supernatural, Dean Winchester é morto pelo demônio Lilith e é resgatado do inferno por um anjo com misteriosas intenções. E até mesmo Jesus Cristo passou pela prova da morte antes de ressuscitar ao terceiro dia e reinar ao lado de seu Pai nos Céus. Outros deuses passam por essa prova: Dionísio, Átis, Asclépio. São numerosíssimos exemplos. Para a ocasião, escolhi o mito de Orfeu e Eurídice, que representa algumas das principais características escorpianas.

            Orfeu era filho da musa Calíope e, segundo alguns, do deus Apolo, de quem ganhou sua primeira lira. Desde pequeno aprendeu a tocá-la com perfeição, e logo tornou-se um músico e poeta extremamente habilidoso. As melodias que saíam de sua lira eram inebriantes, encantadoras, e o som era tão maravilhoso que os animais mais ferozes não resistiam, reunindo-se mansamente ao redor do rapaz para escutar. As árvores e plantas curvavam seus galhos para pegar os sons no vento, os pássaros paravam de voar e até mesmo as pedras perdiam um pouco de sua dureza. Durante a expedição dos Argonautas em busca do Velocino de Ouro, Orfeu usou sua música para encantar e silenciar as sereias, impedindo desse modo que seus companheiros fossem afetados pela melodia mortal das criaturas marinhas. Ele é o símbolo magistral da habilidade de encantar, seduzir, por vezes subjugar sem, entretanto, utilizar de palavras ou força para tanto. É o arquétipo de Escorpião, com sua melodia capaz de encantar e romper enigmas, sua capacidade de rasgar os véus que encobrem as realidades paralelas. Eurídice era uma ninfa auloníade, ou seja, associada aos pastos localizados em montanhas e vales (a palavra grega aulon significa ravina ou vale).

            Os dois se apaixonam de um modo total, um amor tão forte que precisou ser selado com uma união definitiva e imortal, um casamento. O deus Himeneu, protetor das núpcias, foi convidado para abençoar a união, mas durante a cerimônia sua tocha fumegou, sinal de mau agouro. Ele pressente que uma tragédia recairá sobre os noivos, uma angústia de que a felicidade dos amantes durará pouco. Não suportando mais permanecer no local com suas tristes suspeitas, ele decide ir, mas Orfeu pede que ele fique, o que ele faz, mesmo sentindo a dor da separação do casal. A festa termina, e Eurídice, acompanhada de suas amigas ninfas, comemora e dança de felicidade nos campos próximos ao rio Pineios, na Tessália. Orfeu a aguarda no leito para consumar a união com o ato sexual, mais puro e íntimo símbolo de amor e unidade. O casamento, aqui, simboliza a integração entre os princípios masculino e feminino, a relação mais poderosa e representativa para Escorpião, que deseja mais do que tudo o contato profundo com o Outro.

François Perrier - Orphee devant Pluton et Proserpine

Entretanto, os maus presságios de Himeneu se cumprem. O apicultor Aristeu passava por ali e, vendo-a banhar-se no rio completamente nua, sente um desejo violento de possuí-la. Ele a persegue, e Eurídice corre rapidamente pra fugir de sua investida. A mãe de Aristeu, a ninfa Cirene, assiste a tudo e, tomada de forte ciúme, transforma-se numa serpente venenosa e pica o calcanhar de Eurídice, que cai ao chão e poucos instantes depois morre. Sua alma desce silenciosamente aos subterrâneos dos Infernos, reino de Hades e Perséfone, residência final de todos os mortos. Na escuridão do Tártaro, ela chora a perda do amado. Orfeu, descobrindo seu corpo entre as árvores, fica desesperado de dor, tenta acordá-la, beija-lhe os lábios frios, canta suas doces melodias, mas nada trará Eurídice de volta. As ninfas companheiras da bela noiva vingam-se de Aristeu matando todas suas abelhas. Escorpião entrará em seu conhecido processo de morte, de purificação e transformação vital, necessária à renovação e perpetuação da vida. Os domínios de Hades representam o subconsciente do indivíduo, a transcendência do que é real e tangível, o reino do intocável, onde os mistérios da existência humana configuram-se como caracteres por vezes insolúveis, indecifráveis. É papel de Escorpião rasgar esse véu e expor o que é oculto, sombrio, incompreensível, e para tanto ele utilizará de seu dom nato para o entendimento do que está nas entrelinhas.

G. Kratzeinstein - Stub Orpheus and Eurydice Orfeu fica absolutamente transtornado de dor e sofrimento. Sua lira exprime as amargas sensações, em melodias tão tristes que, por onde ele passava, as pedras, os rios, as árvores e os animais comoviam-se com seus sentimentos. As águas congelam e as cascatas param, e até mesmo os deuses e ninfas choram juntamente com ele, sentindo a dor mortal da perda de um ser amado. Orfeu clama seu pesar a todos as divindades e homens que encontra e, não obtendo resposta, decide descer ao Reino dos Mortos pessoalmente, para tentar resgatar sua amada. Ele não consegue viver sem Eurídice, ela é seu Outro Eu, sua contraparte e, de certo modo, sua obsessão. Por ela Orfeu fará tudo a seu alcance, se necessário até morrerá. Ele caminha em silêncio, em luto amargo, pelas florestas e grutas, sem comunicar-se com ninguém, fechado em si mesmo e em seu mortal objetivo. Finalmente chega ao sopé do Monte Tênaro, uma das entradas para o Inferno. Afasta-se da luz, e penetra nas sombras mortíferas dos corredores subterrâneos, em frio e silêncio sepulcrais. Logo avista as margens do lodoso rio Aqueronte, afluente do Estige, com suas águas tão antigas quanto a própria Terra. Na margem, o horrendo barqueiro Caronte, aguardando a chegada de uma alma recém-morta para fazer a travessia. Orfeu se apresenta, pedindo-lhe que o ajude na busca de sua amada, transportando-o para a outra margem, e Caronte prontamente lhe ordena que retorne de onde veio, pois ali apenas passariam os que estivessem mortos. Sem dizer palavra, Orfeu começa a tocar uma triste música em sua lira. O barqueiro emociona-se profundamente, recordando-se dos amores e agruras de sua vida mortal, e convida Orfeu a prosseguir em sua barca. Escorpião aprende que a humanidade é a principal via de acesso à transformação, e apenas através do sentimento de integração e conhecimento do lado sombrio de cada um, representada pela música, será possível ocorrer a mudança interna ou externa tanto almejada, já que todos temos as duas polaridades, positiva e negativa, em constante embate no mais profundo subconsciente do Ser.

Charles de Sousy Ricketts - Orpheus, Eurydice and Hermes
Orfeu chega aos portões da escura morada eterna, e depara-se com o monstruoso cão Cérbero, guardião imortal da entrada. O terrível animal de três cabeças percebe que tem diante de si uma alma em um corpo vivente, e late assustadoramente, rosnando para o herói, que imediatamente inicia uma seqüência de notas absolutamente inebriante em seu instrumento. Cérbero lentamente vai se acalmando, tornando-se tão manso quanto um cão doméstico, e por fim adormece, deixando a entrada livre para Orfeu. O herói passa então por multidões de fantasmas e miríades de almas atormentadas pelo sofrimento, gritando de dor e implorando por sua ajuda. Ele apenas passa entoando seus acordes, aliviando um pouco o horror lamentoso dos espíritos. A lição aprendida por Escorpião nesse ponto de sua descida ao inconsciente subterrâneo e que o doloroso processo de transmutação exige esforço, paciência e afinco, o que lhe é conferido pelo Modo Fixo. Para tanto, o indivíduo escorpiano não deve deixar-se levar por sentimentos corrosivos, como o ódio e a agressividade (Cérbero) e a depressão e recordação das coisas irresolúveis que já passaram (espíritos mortos).

Finalmente, o herói chega ao imponente trono de escuridão dos Imperadores dos mortos, Hades e Perséfone. O deus imediatamente irrita-se ao ver uma criatura viva em seus domínios, e ordena-lhe uma explicação. Orfeu lhe responde com uma canção, acompanhado de sua lira:

            “Ó divindades do mundo inferior, para o qual todos nós que vivemos teremos que vir, ouvi minhas palavras, pois são verdadeiras. Não venho para espionar os segredos do Tártaro, nem para tentar experimentar minha força contra o cão de três cabeças que guarda a entrada. Venho à procura de minha esposa, a cuja mocidade o dente de uma venenosa víbora pôs fim prematuro. O Amor aqui me trouxe, o Amor, um deus todo-poderoso entre nós, que mora na Terra e, se as velhas tradições dizem a verdade, também mora aqui. Imploro-vos: uni de novo os fios da vida de Eurídice. Nós todos somos destinados a vós, por essas abóbadas cheias de terror, por estes reinos de silêncio, e, mais cedo ou mais tarde, passaremos ao vosso domínio. Também ela, quando tiver cumprido o termo de sua vida, será devidamente vossa. Até então, porém, deixai-a comigo, eu vos imploro. Se recusardes, não poderei voltar sozinho; triunfareis com a morte de nós dois.”

 A atmosfera do local transformou-se. As almas derramavam lágrimas enternecidas. Tântalo, apesar da sede, não tentou mais conseguir água, apenas para ouvir o maravilhoso som; Íxion parou de girar sua roda de fogo; as danaides descansaram do trabalho de encher a caldeirão vazado; Sísifo deixou de subir a montanha com a pedra, sentando-se nela para escutar. Até mesmo as Fúrias derramaram lágrimas cheias de ódio pela dor que sentiam ao ouvir a música. Perséfone também emocionou-se profundamente, e por fim Hades cedeu, derramando lágrimas de ferro. O rei manda buscar Eurídice dentre as multidões que rodeavam o trono. Ela chega fraca, ferida, coxeando, mas um sorriso ilumina sua face mortalmente pálida ao ver o amado. Perséfone consente que Orfeu a leve, mas o adverte de que deveria caminhar à frente da esposa durante todo o percurso até a entrada, sem olhar-lhe o rosto em nenhum momento, caso contrário, Eurídice retornaria às sombras. O casal prossegue por passagens íngremes e obscuras, enquanto Orfeu tocava suas alegres melodias para inferir vida em Eurídice. Orfeu sente um forte desejo de olhar a amada, uma ânsia insuportável de abraçá-la e conhecer seus lábios novamente. Quase próximos da superfície iluminada, ele não resiste e vira-se para trás, temendo que ela não estivesse seguindo-o. Encara por um momento a linda face fantasmagórica da esposa. Eurídice é imediatamente arrebatada, engolida pelas sombras mórbidas do Hades pela segunda vez, soltando um último suspiro de amor. E assim Escorpião chega a seu objetivo simbólico, ou seja, a transformação. Entretanto, deve entender que de nada adianta a conclusão do longo e profundo processo se este não for efetivado de modo gradual, lento e cuidadoso. Os extremos a que chega Escorpião podem levá-lo a perder repentinamente tudo o que construiu com tanto ardor, e para tanto deverá aprender a habilidade de adiar o ardor do momento de integração total, em que ele ressurgirá como a fênix das cinzas.

Emile Levy - Death of Orpheus Orfeu até tenta retornar o Inferno, mas Caronte nega-lhe passagem peremptoriamente. Tal era sua obsessão por Eurídice, que ele deixa-se ficar ali às margens do Aqueronte por sete dias, em súplicas e choros amargos, acusando de crueldade as divindades da escuridão. Depois de retornar à superfície, manteve-se alheio às outras mulheres, tal era a dor pelo seu infortúnio, a perda de sua amada. Um grupo de ninfas Mênades da Trácia se apaixona pelo rapaz, e cada uma delas tenta de tudo para seduzi-lo. Ele, entretanto, as trata com fria indiferença, fiel à memória da esposa. Certo dia, excitadas pelos ritos de Dionísio, uma delas exclama: “Ali está aquele que nos despreza !”, lançando-lhe seu dardo, que mal chega próximo da música da lira de Orfeu e já cai ao chão, completamente inutilizado pelo irresistível som. O mesmo ocorre com as pedras que lhe são atiradas. As mulheres, então, enfurecidas, começam a gritar, abafando o som da música, e em pouco tempo os dardos acertam Orfeu, derramando seu sangue. Elas rasgam as vestes do músico, enlouquecidas, e depois despedaçam seu corpo, atirando sua cabeça e sua lira, que continuava tocando, no rio Hebrus. As nove musas reúnem tristemente as parte do corpo de Orfeu, enterrando-o em Limetra, onde, a partir daí, o rouxinol canta suavemente. A lira foi colocada por Zeus entre as estrelas. Mas Orfeu finalmente está feliz. Ele reencontrou seu grande amor nas sombras do Tártaro, e agora pode olhá-la e abraça-la o tempo que quiser. As Mênades são transformadas em carvalhos, condenadas a viver por anos a fio presas firmemente à terra, ouvindo a suave música do vento, que lembra os sons da lira de Orfeu.

            Essa última parte do mito associado a Escorpião nos lembra que, na busca de nossos objetivos e metas, devemos manter a fidelidade, persistência e tenacidade representadas por Orfeu, que não sucumbe às investidas das Mênades, os desejos e sentimentos das camadas obscuras da personalidade. No fim, entendemos que na vida não há caminho de retorno consciente, ou seja, o que está feito está consumado, e não pode ser revertido. Eurídice estava morta, e não retornaria jamais. Por isso, é necessária a transformação através da morte simbólica de Orfeu, a superação das coisas irreversíveis, e o entendimento profundo e inquestionável que apenas as experiências da vida podem trazer. É interessante perceber que, na Grécia Antiga, havia uma religião de formas um tanto heréticas, o Orfismo que, segundo se diz, teria sido fundado pelo próprio Orfeu, após o seu retorno do Mundo dos Mortos. Era uma religião de acentuadas características escorpianas, já que relacionava-se principalmente à morte, à ressurreição e à reencarnação, elementos que, inquestionavelmente, são as mudanças e transformações mais significativas e enigmáticas que existem.
(Fonte: obsessivedream.wordpress.com)

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