UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A Carta

Não pense que a pessoa tem tanta força assim 
a ponto de levar qualquer espécie de vida 
e continuar a mesma. 
Até cortar os defeitos pode ser perigoso - 
nunca se sabe qual o defeito que sustenta 
nosso edifício inteiro...
há certos momentos em que o primeiro 
dever a realizar é em relação a si mesmo.
Quase quatro anos me transformaram muito. 
Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade 
e todo interesse pelas coisas. 
Você já viu como um touro castrado se transforma em boi.
Assim fiquei eu...
Para me adaptar ao que era inadaptável, 
para vencer minhas repulsas e meus sonhos, 
tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma
que poderia fazer mal aos outros e a mim. 
E com isso cortei também a minha força. 
Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - 
respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - 
não copie uma pessoa ideal, 
copie você mesma - é esse seu único meio de viver. 
Juro por Deus que, se houvesse um céu, 
uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida
e iria para um inferno qualquer.
Se é que uma vida morna não 
é ser punida por essa mesma mornidão.
Pegue para você o que lhe pertence, 
e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. 
Parece uma vida amoral. 
Mas o que é verdadeiramente imoral 
é ter desistido de si mesma. 
Gostaria mesmo que você me visse e assistisse 
minha vida sem eu saber. 
Ver o que pode suceder quando se pactua 
com a comodidade da alma.

(Autor: Clarice Lispector)

Nenhum comentário: