UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Tempo



Tempo!
Bendito tempo,
que as dores sempre acalma,
que aquieta as más lembranças,
que preserva a criança
que levo escondida em minh'alma.



Tempo!
Maldito tempo,
que marca meu rosto com garras,
que passa sobre meus sonhos,
que rasga a mágica tênue
da vida que se esvai nas floradas.



Tempo,
pudesse te dominar,
sem medo, sem pejo de nada,
um tango iria dançar
e enfeitar de alegria
os minutos que em mim se abrindo
nunca iriam passar.


Ah, tempo,
pudesse te segurar
bem firme por entre os dedos,
fixaria poentes
em cores de obra-prima,
teceria belos casulos
de luar e de neblina
para guardar meus segredos.

E os bem-te-vís, tempo,
os ouviria cantar,
sem pressa, parada no cais,
lembrando quem bem-me-viu,
e que levaste em tuas asas
para o mundo do nunca mais.


Tempo!
Não tires assim meu alento,
preciso já construir
as pontes dos bons intentos,
romper distâncias, calar o pranto
enquanto busco o amor,
que de maldade escondeste
nas trevas do desencontro.



Tempo, fique mais,
quero rever o mar,
de longe e de perto amar,
desfolhar muitos azuis,
resplandecer em auroras,
esquecida que nas horas
estás depressa a passar.

Por fim, como anjo vadio,
planando sem eira nem beira,
sobre abismos de saudade,
hei de mostrar-te a verdade:
não podes comigo, tempo,
sou filha da eternidade.



(Autora: Maria Lucia Victor)

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