UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Rapsódia sobre um noite de vento


Meia noite.
Uma síntese lunar captura
Todas as fases da rua,
Sussurrantes sortilégios lunares
Dissolvem os planos da memória
E todas as suas límpidas tramas,
Divisões e precisos mecanismos.
Cada lampião que ultrapasso
Pulsa como um tambor fatídico,
E através das lacunas do escuro
A meia noite golpeia a memória
Como um louco brande um gerânio morto.

Uma e meia,
O lampião cuspia,
O lampião resmungava,
O lampião dizia: “Olha aquela mulher
Ao teu encontro hesitante à luz da porta
Que a recorta como um riso escarninho.
Repara-lhe a barra do vestido
Rasgada e suja de areia,
E o canto de seu olho que se arquei
Como um grampo retorcido.”

A memória expele e disseca
Um turbilhão de coisas tortas;
Um ramo tortuoso sobre a praia
Polidamente carcomido e cinzelado
Como se o mundo erguesse à superfície
O segredo de se esqueleto,
Rígido e alvadio.
A mola espatifada no pátio de uma fábrica,
A ferrugem que se aferra à forma
Que a força deixou tensa e enrodilhada
E pronta a abocanhar com uma dentada.

Duas e meia,
O lampião dizia:
“Observa o gato que na calha se adelgaça,
Espicha a sua língua e saboreia
Um naco rançoso de manteiga.”
Tal a mão do menino, automática,
Surrupiou e embolsou um brinquedo
Que ao longo do cais deslizava.
Eu nada podia ver atrás dos olhos do menino.
Tenho visto pela rua olhos que tentam
Emergir por entre iluminadas persianas,
E certa tarde um caranguejo vi na lama,
Um velho caranguejo em sua carcaça calcária
A agarrar-se à ponta do graveto que eu sustinha.

Três e meia,
O lampião cuspia,
O lampião no escuro resmungava,
O lampião zumbia:
“Olha a lua,
La lune ne garde aucune rancune.
Pisca um olho tímido,
Sorri pelas esquinas.
Alisa os cabelos de gramínea.
A lua perdeu a memora.
Bexigas descoradas ulceram-lhe a face.
Suas mãos retorcem uma rosa de papel
Que recende a pó e água de colônia.
Ela está só, em companhia
De todos os antigos eflúvios noturnos
Que lhe cruzam e entrecruzam o cérebro.”
Aflora a reminiscência
De secos gerânios pálidos
E de poeira nas frinchas,
Aroma de castanhas pela rua,
E odor de fêmea nas alcovas clandestinas,
E de cigarros pelos corredores
E de coquetéis nos bares.

O lampião disse:
“Quatro horas,
Eis o número sobre a porta.
Memória!
Tens a chave,
A luminária alastra um círculo na escada.
Sobe.
A cama é franca; a escova de dentes da parede pende,
Põe teus sapatos junto à porta, dorme, para vida te talha.”

O último talho da navalha.

(Autor: Thomas Stearns Eliot - Tradução de Ivan Junqueira)

Nenhum comentário: