UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

LIVRO: A Dádiva - Título original: The Gift


Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Toni Morrison

Sinopse: Da autoria da primeira mulher negra a ser distinguida com o Prêmio Nobel da Literatura (1993), A Dádiva é um romance extraordinário que se passa na América do Norte de finais do século XVII. Profundas divisões sociais e religiosas, opressões e preconceitos exacerbados propiciam o cenário ideal para a implantação da escravatura e do ódio racial. Jacob Vaark é um comerciante anglo-holandês que apesar de se manter à parte do negócio dos escravos, que então dá os primeiros passos, acaba por aceitar uma menina negra, Florens, como pagamento de uma dívida de um fazendeiro de Maryland. Nesta parábola do nascimento traumático dos Estados Unidos, Morrison revela-nos o que se esconde sob a superfície de qualquer tipo de sujeição, incluindo a da paixão, e o quanto essa falta de liberdade é nociva para a alma.

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Com um início caótico e impreciso testa a preserverança daquele que se atrever a lê-lo! Chega a desafiar a lógica com as suas frases, aparentemente, sem nexo e com seu discurso incoerente. Uma escrita que me deixou perplexa mas, intrigada. Finalmente, percebi o porquê. Toni Morrison só queria eu que conhecesse a personagem por dentro. Queria que eu vivesse dentro dela! No capítulo seguinte muda de narrador porém, mantém o mesmo estilo e aí incorporo outro ser. Quando dou por mim, já estou no âmago da história sem, no entanto, conseguir abarcar a complexidade da mente humana. Um labirinto de sentimentos, valores, loucuras e idéias!

É uma descrição inimitável e rara que perturba o leitor. Tive de o ler devagar para que a individualidade e a singularidade de cada personagem se entranhasse em mim. E que personagens! São todas exuberantes, cheias de segredos e cada uma com um discurso diferente com prolepses e analepses que me obrigaram a estar com a atenção redobrada. Cada pormenor e cada citação tornavam o livro ainda mais fascinante.

Foi uma leitura deliciosa e sobretudo, poderosa! Abordando a escravatura,os conflitos sociais e religiosos da época, A Dádiva é um testemunho grandioso do quão importante é liberdade! A liberdade dos homens e a liberdade de alma!

Não foi uma leitura fácil, mas foi uma leitura deliciosa. A autora alterna entre a narração de uma história contada na terceira pessoa, e uma "carta" escrita na primeira pessoa, onde encontramos vestígios de uma certa esquizofrenia que contribui para o misticismo da história, tornando-a sem dúvida, ainda mais preciosa.

«Dentro de mim estou a mirrar. Subo o leito do regato sob as árvores vigilantes e sei que não sou a mesma. Perco alguma coisa a cada passo que dou. Sinto o esgotamento. Está a abandonar-me alguma coisa preciosa. Eu sou uma coisa à parte. Com a carta pertenço e sou válida, legítima. Sem ela sou um bezerrinho fraco abandonado pela manada, um servo sem os sinais característicos mas com uma escuridão com a qual nasci, exterior, emplumada e com dentes salientes. É isso que a minha mãe sabe? Porque me escolheu para viver sem mim? Não é a escuridão exterior que partilhamos, a minha mãe e eu, mas a interior que não partilhamos. É este morrer apenas meu? É a coisa com garras e penas a única vida em mim? Diz-me. Também tens o escuro exterior e quando te vejo e caio em ti sei que estou viva. De súbito, não é como antes, quando estou sempre com medo. Agora não tenho medo de nada. A partida do Sol deixa atrás escuridão e o escuro é eu. É nós. É a minha casa.»

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