UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Estertor sob a poeira - Bárbara de Fátima

...onde a própria alma humana se assemelha a uma flor em desespero.
Jornal O GLOBO (05.03.1935)

É impressionante como o escritor Orris Barbosa descreveu as taxas estatísticas concernentes às produções dos estados nordestinos, e, no entanto, fez uso de um lirismo que envolveu as suas descrições manifestadas na simplicidade de um passeio de carro através de imagens compostas em sua memória, onde a poesia dessas imagens é uma realidade concreta, palpável:

...sem contar do homem do campo que se converterá em operário mecânico na esperança de poder, algum dia, cultivar melhor a terra rejuvenescida pela máquina. (p.18)

Algumas passagens são tidas como essencialmente antagônicas e a expressão poética do autor flui gradativa e originalmente:
...e no inverno, vive entre a miséria e a abundância (p.36)
...a miséria súbita e a fortuna inesperada (p.36)
...do extremo da aridez ao extremo da florescência... (p.36)
Como pode frutificar a liberdade se a terra se encontra escravizada? (p.37)
A sua voz enchia a praça João Pessoa, rasgante e sonora (p.43)
...tudo de mistura com homens, mulheres e meninos mal ajeitados entre a carga, exaustos, mas satisfeitos. (p.97)
O tema da seca é um desafio para, qualquer escritor. É um símbolo de exploração que embola o Nordeste há muito tempo, traduzindo o grito sofrido num canto sem voz. A transcrição do autor foi bem elaborada e, por vezes, deslumbra a exaustidão dos caminhos percorridos:

Mas a seca – eis o seu aspecto positivo – é, às vezes, um dos instrumentos da graça e da assistência divinas. [...] Mas o seco tem também o seu lado negativo, aquele que diz respeito, não ao fogo das alturas, mas à terra; ele é, então símbolo de esterilidade. Estéril é aquele que busca os consolos terrestres, ao invés de abandonar-se ao fogo ardente das alturas.
(Dicionário de Símbolos, 1982, p. 807-8)

As metáforas valorizam o regional, onde o autor explora os motivos típicos de sua terra, exprimindo em numerosas referências os substantivos determinantes que adjetivam muitas vezes a padronização da estiagem:
...leito sereno do rio Sanhauá (p.49)
...com as portas do coração trancadas pela fome ... (p.45)
...empreendidas no delírio da fome sobre a terra calcinada (p.47)
O sol, esbraseando nos campos proletários... (p.69)
...formigando laboriosamente nas bocas escancaradas das serras... (p.69)
...a poeira humana... (p.100)
...tal a brutalidade monótona da natureza que se despiu de folhagens para vestir-se de pedras... (p.102)
...os algodoais sorriem pelos capulhos alvos... (p.102)
...caatinga sertaneja esbraveja no silêncio das coisas – uma vegetação heróica que luta com a aridez dominante, insinuando-se, atormentada, a rasgar a epiderme granítica da terra para poder viver (p. 103)
...o homem de bronze... (p.105)
A boca da noite, começa a soprar uma brisa leve... (p.108)
Ao longe, uma voz vadia e sonora enche de lirismo a noite quieta e fresca (p.109)
...com o beiço inferior virado num riso amargo (p.110)
...no claro azul de aço do céu (p.110)
Observamos que o campo de investigação é imenso, o qual ele explora até que o tom sarcástico e irônico se faz presente:
É o heroísmo da fuga. (p.45)
Com honestidade! Está aí, simplesmente sendo honestos! (p.59)
E é bem triste e chocante que no Nordeste, na terra das secas, seja apontado como uma das causas da miséria, o excesso da água... (p.89)
Morre-se, mas é de barriga cheia... (p.107)

A seca é a consubstanciação da maldade que o Nordeste representa. A seca é bem explorada através da ótica de uma perspectiva objetiva, onde os exageros evocam de maneira uníssona e a linguagem, se faz igualmente paradigmática na fuga do homem, e sua incessante busca por um braço de terra, onde possa viver e deixar viver:
...e os negócios se desenvolveram desmedidamente (p.16)
...revestem-se de verdura estonteante às primeiras chuvas... (p.36)
...no estilo dos pregadores católicos italianos, de braços abertos e palavras jorrantes como uma fonte perpétua de sílabas. (p.43)
...sob o céu sinistramente azul... (p.45)
...na marcha como síntese mecânica de mil braços de trabalhadores especializados que o construíram em poucos minutos... (p.91)
...tal a luminosidade interna do sol a pino (p.93)
...no vozear atordoante do oceano de interesses (p.96)
Não observamos em nenhum momento uma exaltação aos políticos e a seus programas contra a seca do Nordeste, em especial a de 32, por parte do autor. O que freqüentemente encontramos é a solidariedade para com o homem do campo, enfraquecido pela fome e pelas promessas de dias melhores. O que se vê, é o desamparo e a situação de indefesa na qual foram colocadas as famílias, principalmente as mulheres e crianças.
É de estarrecer a tragédia da infância sertaneja, subitamente atirada a si mesma durante a seca e incorporada à fila dos adultos inermes. Na multidão esquelética de pedintes andrajosos e nauseabundos, a infância, desde o menino de peito até o púbere, começa o aprendizado de uma existência brutal, entristecida na fase da vida em que a alegria é instintiva. (BARBOSA, 1998, p.5-6)

A seca é, por definição, uma elegia ao sofrimento. É também a agonia do esquecimento. Mudam os cenários, apenas como disfarce característico e que se identificam, aqui e ali, nas múltiplas passagens. A cobrança de soluções é insistentemente invocada. É uma materialização progressiva e alarmante do mal que não se pode esconder. A seca está em toda parte, do litoral ao alto sertão, agindo em arrebatado estado de solilóquio, de monólogo. A sua presença é poética para alguns, porém, satírica e incômoda para outros. É assim que a seca demonstra a sua condição de decaída, de fraca e de impotente. Desse momento de crise, é que deveria ocorrer a dissipação de sua presença no Nordeste. Mas não, a seca é o símbolo de exploração dos fortes, dos poderosos. E Barbosa (1998) expressa de forma soberana, a condição do homem sertanejo fazendo-se participar de sua submissão, que demonstra a humildade dos seus sentimentos, que como argila, vão se amoldando de acordo com as promessas e as novas situações.

(Artigo publicado In: MELLO, José Octávio de Arruda (org.). Ideologia e Espaço em Orris Barbosa. Mossoró (RN): Fundação Vingt-Un Rosado, 1999. p.53-57.)

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