UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Caminho sem volta - Bárbara de Fátima

O pequeno depósito de lixo já havia sido esvaziado pelo menos umas sete vezes, tudo estava voltando ao ponto inicial. Os sintomas voltavam tão rápido quanto o girar de um carrossel. O seu corpo estava deformado pelo excesso de tranqüilizantes e o médico havia decidido suspendê-los por alguns meses, mas a agressividade e histeria voltaram cada vez mais fortes e decididas a ficar.
Há muitos anos, um jovem casal na esperança de verem seu sonho realizado e por ser a mulher estéril, o médico aconselhou-os a adotarem uma criança, o que a princípio causou repulsa e pane no casal. Mas, depois com o tempo, ela muito amorosa aceitou a sugestão, o que não aconteceu com o seu marido que rejeitava a idéia com pé firme. Tudo foi tratado com calma e sutileza, a verdadeira mãe da criança entregou-a sem que chegasse ao menos a conhecê-la. Era uma menina linda, aparentemente normal e sadia.
- Não sei se será uma boa idéia essa de adotar uma criança, disse seu Edgar.
- Podemos tentar. Será bom para nós dois e preencherá o vazio desta casa tão silenciosa, disse dona Vera.
Tudo estava preparado para a sua chegada, o berço, a decoração do quarto, as roupinhas. Tudo eram paz, amor e, acima de tudo, a divindade da sua presença representando tudo àquilo de mais sagrado num lar religioso. O pai, seu Edgar Lima, mal chegava ao quarto para vê-la, contudo, quando ela chorava, ele abandonava aquele ar de carrasco que usava uma máscara de ferro, e começava a niná-la, pegando-a no colo.
Resolveram batizá-la e chamaram-na de Lisa, um nome simples como ela era, mas cheio de carisma pelo que ela representava em suas vidas.
Dois anos se passaram na mais completa felicidade, Lisa filha única e bastante mimada, tudo era alegria. Até que se observou certa debilidade no seu comportamento e os familiares comentavam e quando sua mãe, dona Vera Lima ouvia-os, tratava logo de sair de perto e recusava-se a aceitar idéia de que a pequenina Lisa não fosse mentalmente normal.
Depois de muito aconselhamento, a mãe passou a freqüentar vários consultórios médicos, psiquiatras que quase ou nunca detectavam a sua real patologia através dos sintomas que a menina apresentava. Apenas questionavam se a doença era hereditária ou se apenas teria sido uma rejeição por parte da mãe biológica?
Na escola, durante os primeiros anos, tudo bem, tudo normal. Nada de zangas, nada de agressões. No término do primeiro grau, percebe-se que Lisa em vez de progredir no avanço da educação, ela regride e passa até a estudar com crianças de 3 ou 4 anos, estando ela já com 10 anos. Neste período, várias crises foram causadas involuntariamente por crianças e adultos que passaram a debilitar a sua lucidez.
Uma das crises ocorreu durante o recreio, quando ela enfrentou um professor, e estando sozinha na sala de aula, ela tirou a roupa e prostrou-se nua diante dele, que apavorado procurou o diretor da escola e lhe expôs o problema. Daí sua mãe foi aconselhada pela diretoria a tirá-la da escola.
- Não nos queira mal dona Vera, mas temos que pensar na segurança das outras crianças e adolescentes matriculados aqui. O professor dela ficou apavorado com toda essa situação e quase nos pediu a sua demissão. Sentimos muito, afirmou o diretor da escola.
- Eu e o pai dela é que estamos muito envergonhados com esse comportamento. Pedimos desculpas, disse dona Vera.
Esta nova fase representa o caos, para a família Lima, cujos sonhos de terem uma filha formada, bem empregada, com um futuro brilhante chegam ao fim. O difícil para eles não é aceitar a insanidade de Lisa, o difícil é ver esses sonhos diluídos como o gelo derretido em temperatura ambiente, lento, mas contínuo e de forma irreversível. Como aceitar que aquele ser humano tão esguio e bondoso não lhes fosse deixar frutos, tornando-os avós? E os netinhos? A dor foi maior do que o próprio problema a ser enfrentado.
Em casa, Lisa vivia adormecida sob o efeito de tranqüilizantes que passaram a deformar o seu corpo, tornando-a uma obesa em potencial. A fome era insaciável. Os pais já não freqüentavam a sociedade, iam apenas aos atos religiosos, pois eram católicos.
Na Igreja, Lisa conheceu um rapaz educado e atencioso que ao vê-la procurou logo fazer amizade. Para nosso espanto Lisa sentiu-se atraída por suas boas maneiras. E 'apaixonou-se', tratando de colocá-lo no seu mundinho como a coisa mais preciosa do mundo. Nos encontros que se seguiram, Lisa passou a inventar que estava grávida e que o rapaz já tinha dois filhos e era casado. Raminho, como era conhecido, foi avisado de seu problema, mas não sendo preconceituoso, lhe devotou total e completo apreço.
Quando as crises atacavam, ela repetia as palavras e frases mil vezes, pedia presentes sem nexo, relatava situações que já haviam acontecido há anos atrás. Passava horas olhando para a televisão como se não pertencesse a esse mundo, entretanto tinha uma paixão: a Xuxa. Meu Deus, que situação mais complexa a ser enfrentada? Como resolvê-la?
Alguns psiquiatras aconselharam a seus pais de a colocarem numa escolinha de natação, para que com a prática deste esporte ela pudesse perder peso e melhor desenvolver o seu lado social interagindo com outras pessoas. Foi o caos total.
Certa manhã, quando chegou à escolinha, Lisa viu três rapazes entre 14 e 16 anos sentados na beira da piscina e tentou iniciar uma conversação, por estarem alheios ao seu problema eles começaram a caçoar dela, chamando-a de doida. Ela partiu prá cima deles, atacando-os como uma fera enfurecida, quando perceberam que ela era realmente louca, fugiu em direção à rua, todos vestidos em trajes de banho de mar. Outro pedido de afastamento foi feito a seus pais para que por motivo de segurança, Lisa não freqüentasse aquela agremiação esportiva.
- Não podemos manter Lisa aqui conosco mesmo sendo por tempo limitado e devido à uma terapia. Por favor, procurem uma outra agremiação esportiva. Há algumas para pessoas com necessidades especiais, afirmou a psicóloga da agremiação.
Agradecemos a atenção e os cuidados devotados à Lisa enquanto ela esteve presente aqui, retrucou seu Edgar.
Outro caso, foi na escola na qual seus pais a matricularam. Foi uma nova tentativa, sem resultado positivo. As crianças esperavam por seus portadores quando, de repente, uma delas chamou Lisa de louca. Foi o bastante para Lisa se armar com um pedaço de pau e perseguir a garotinha que chocada com o ato tentava fugir por entre as outras. Não teve quem contivesse a fúria animal de Lisa. A garota ainda foi ferida no braço direito, mas alcançou o transporte escolar a tempo de escapar daquele pesadelo. Lisa que perdera totalmente a noção de espaço e de tempo saiu correndo atrás do transporte escolar por quase dois quilômetros. Quando deu por si e voltou ao ponto de partida, seu pai já havia sido informado do ocorrido pela direção do colégio e também já haviam sugerido a transferência dela para outro estabelecimento de ensino. Assim, de crise em crise, as chances de uma vida normal em sociedade foram-se esgotando uma a uma. O resultado foi um confinamento total dentro de sua própria casa, a custo de muitos psicotrópicos e de muita paciência.
Lisa passava horas alheia ao mundo exterior, no imenso quintal de sua casa, às vezes, sem que sua mãe a percebesse sentava-se numa cadeira de balanço no centro deste quintal, completamente nua, ou corria atrás das galinhas para dar-lhes de comer. Que ingenuidade! Da janela do quarto, uma lágrima fria e silenciosa corria lentamente na face do seu pai. Depois de algum tempo, ele mesmo levava algumas roupas íntimas e tentava vestir nesta criatura que ele tanto aprendeu a amar.
Depois de vinte anos, seu Edgar adoeceu e quase que perdeu totalmente a saúde e dona Vera passou a administrar a casa e a eles dois, seu marido e a filha deficiente mental.
Um dia de inverno, depois de um temporal a crise chegou fria e rebelou-se, em direção à sua mãe que ela atacou usando uma faca de cortar carne que dona Vera sempre utilizava na cozinha. Seu pai havia saído para as compras e ainda não havia voltado sem defesa dona Vera correu para o quarto e tentou fechar a porta, mas sua saia ficou presa na fechadura da mesma. Neste instante, seu Edgar voltou e percebeu o acontecido, procurou por Lisa, porém não a encontrou. Dona Vera estava no quarto murmurando palavras sem nexo e em adiantado estado de choque. E Lisa? O seu médico foi avisado do seu desaparecimento e pediu calma aos seus pais. O médico decidiu ir ao seu consultório para tomar algumas providências, entretanto, para surpresa sua Lisa estava no jardim da clínica andando de um lado para o outro, com a faca na mão, completamente desnorteada. Ele a desarmou deu um tranqüilizante e ela adormeceu. Doutor Weber, este era o nome do médico de Lisa, decidiu mandá-la para uma clínica especializada sem a permissão prévia dos seus pais. Para ele, era inconcebível que seu Edgar, um homem formado em Direito, um respeitável advogado criminalista e sua esposa, dona Vera, enfermeira-chefe de um renomado hospital pudessem viver tão alheios a uma ameaça às suas próprias vidas. Apenas Raminho fora avisado e a acompanhou na própria ambulância. Lisa foi internada sem nenhuma resistência física, sabendo que Raminho estaria sempre com ela.
Para a família de Lisa, seu Edgar e dona Vera, este momento e as emoções vividas, neste período, seriam eternas e inesquecíveis, não porque fossem boas, mas sofridas e bastante dolorosas. E este dilema os unia cada vez mais, com a finalidade de resolver essa situação.
Na clínica de repouso, sob o efeito de tranqüilizantes, eles a encontraram dormindo, parecia um anjo de candura. A tez pálida e quase sem respiração. O choro os pegou de maneira convulsiva, a mãe quase perdeu o controle, enquanto que seu pai se esforçava por controlar-se. Esse período durou uns quinze dias, o médico receava em mandá-la de volta para casa com medo de uma brusca recaída.
Dois meses depois chegou o dia tão esperado. Seus pais chegaram à clínica de repouso, mas Lisa não estava lá. Dr. Weber apareceu dizendo que ela havia tido uma nova crise e, por isso, se encontrava em tratamento de sonoterapia. A enfermeira atacada por ela se encontrava no Centro de Terapia Intensiva (CTI) de um hospital local em estado bastante grave, pois Lisa havia deferido um golpe de tesoura na altura do pescoço da mesma.
- Infelizmente houve algo muito grave aqui na clínica e Lisa, por motivos de segurança, deverá permanecer internada aqui por mais alguns dias, dependerá da evolução do quadro da sua doença, disse o médico pensativo.
Triste caso, para ser abordado e, acima de tudo, de ser fichado no relatório da cliente que após o incidente tornara-se novamente débil e alheia a tudo ao seu redor. Seus pais, coitados, não esperavam uma reação tão brusca por parte da sua menina. O que fazer após a sonoterapia? Eles a internaram bem contra as suas vontades. Pelos pais ela ficaria em casa apesar deles estarem correndo risco de vida.
Em vista de tantos riscos e problemas, os amigos, os vizinhos e a família, tios, primos e demais parentes começaram a não freqüentar a casa deles e, pior ainda, passaram a discriminar o casal e o motivo era um só: medo de Lisa, medo de suas agressões, medo de suas reações, pânico da sua histeria com relação às crianças. Tudo concorria para o afastamento de todos.
Quando sua presença era permitida, ela já chegava dopada com uma super dose de tranqüilizantes e passava parte das festas e confraternizações familiares cochilando e quando acordava era para comer sem medida, compulsivamente, quando não agüentava mais a tendência era vomitar tudo e em todos ao seu redor.
Seus pais, seu Edgar e dona Vera, eram pessoas educadas e de comportamento exemplar, contudo tinham um grave defeito: eles impunham a presença dela a todos. Eles evitavam sair e deixá-la sozinha com medo da reação dela ao ver-se só e abandonada. Ninguém agüentava mais essa situação, mas que remédio?
No inverno passado a crise dela tinha chegado forte e autoritária, sim, porque as crises de Lisa estavam, agora, ligadas à sua autoridade, visto que, quando ela desejava alguma coisa, ela ameaçava seus pais até de morte. Se eles se descuidassem, ela pegava facas, garfos, ferros, etc. Jogava pedra na mãe, pratos na cara do pai, caso eles não lhe obedecessem ao pé da letra. Isto acontecia porque sua insanidade só se manifestava com traços de menina bastante mimada do tipo: eu quero, eu exijo, eu ordeno!
Outro dia, quando exigiu comida de sua mãe e por este motivo não foi atendida, ela pegou um paralelepípedo e saiu correndo atrás de sua mãe dando voltas ao redor da laranjeira que se encontrava no centro do quintal. Não conseguindo o seu intento de matar a própria mãe, que escapulira para dentro de casa. Ao fechar a porta atrás de si, percebeu que Lisa jogara a pedra na porta causando uma enorme danificação à mesma.
Seu Edgar e dona Vera jamais confessarão que têm culpa, talvez mínima, mas de grande relevância no comportamento de Lisa. Sem querer, talvez por falta de certo tipo de esclarecimento médico-psiquiátrico, eles tenham criado um monstro pronto para atacar no primeiro momento de descuido. O pai, um homem adoentado, sem forças físicas suficientes para reagir a uma agressão e a mãe com a saúde debilitada devido aos intensos choques emocionais e a esses incidentes que a fizeram envelhecer precocemente, cuidando de dois seres que Deus colocou sob a sua guarda, para que se cumprisse o seu destino.

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