UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A Comarca das Pedras: magia de amar - Bárbara de Fátima

Escrever uma coletânea de vários poemas é tarefa bem mais simples do que descrever um poema voltado exclusivamente à terra natal como Hildeberto Barbosa Filho soberanamente apresentou neste livro de um poema só. Aroeiras é eternizada nos seus encantos e artifícios materiais pelo autor ora como derivada de substantivos abstratos: amor, saudade, dor mas também se concretiza “sem que o afeto não a negue” no “rio que deságua no interior da alma” (p.70). E nessa espiritualidade materializada, vão-se fluindo as suas reminiscências da “memória doída e reinventada...” (p.81). É sem sombra de dúvida uma ligação muito forte, talvez inesquecível e penetrante que o faz cantar poeticamente a sua Aroeiras onde para “ter uma cidade é como se ter o fogo que o amor arrasta e que a terra abrasa” (p.81). Aquele amor que não tem tempo definido nem se contenta com a simples presença, pois quer a memória, quer o pulsar do coração, quer estar dentro de nós, plenificando-nos com o êxtase da imortalidade.
Aroeiras é assim, sem muitos enigmas a serem desvendados, encantos que se mesclam na dádiva natural que revela aos seus mais íntimos admiradores, os seus filhos naturais, é por eles que o seu coração transborda em exercícios poéticos traduzidos por um Hildeberto que a chama amorosamente e a define como sendo “memória doída e reinventada é relicário para além das pedras, para além do pó da terra, do pó do poema, ser vestido de sol, alumiando o negror que te habita a cidade das pedras infinitas” (p.81). É pura magia! A magia de amar infinitamente, doando-se em palavras sublimadas pelo afago das rimas, pelo ritmo cadenciado das consoantes e pela sonoridade vocálica. Segundo Hildeberto, Aroeiras é um símbolo de um ponto nostálgico pendente e “que se alonga no mar de suas pedras, que se estende pela nudez da terra e medra no afeto que se encerra” (p.81). Lembrança que não se omite e nem fica “solitária, sedenta entre as montanhas” (p.89) fica solta e transborda de um fluxo contínuo de palavra poética sempre palpável, extensa e desafiadora que é um convite à exploração lingüística. Não havendo interrupção do discurso, por um lado, e a presença marcante da disciplina métrica, por outro, emprestam a esses versos um extraordinário efeito musical. Até observamos que, em alguns versos ressalta a atividade lúdica, que não foge do trocadilho, mas, pelo contrário, o cultiva: “E mais que tudo, Zé da Maleta e sua ira, Zé da Maleta e sua lira, sua loucura que sempre me espantou” (p.54).
Sendo o próprio poema o leitmotiv d’A Comarca da Pedras como já observamos, é natural que a musa, Aroeiras, seja insistentemente invocada: “Uma cidade é algo mais que suas ruas, [...] é algo mais que os homens, [...] é algo mais que o desejo, [...] é algo mais que a possibilidade, [...] é algo mais que suas manhãs” (p.37-8).
O poema é justamente uma viagem em que se sucedem o desenrolar de referências ao solilóquio, ao monólogo e que são n’A Comarca das Pedras muito freqüentes, e o estado de possessão lírica é também mencionado pelo autor: “Todo mundo tem uma cidade e eu tenho a minha” (p.48). É fácil ver-se que as qualidades metafísicas se traduzem em admiração, meditação e um entusiasmo acentuadamente nativista e religioso: “A terra, avara e parca, é dos homens o rude relicário. O cruzeiro abençoa a solidão azul das furnas. O adro da igreja velha abriga o salitre da vida” (p.65). Muitos versos são compostos na memória e os sentimentos que animam o poeta começam a manifestar-se saudosamente, assumindo a cidade, cada vez mais, o papel de bem-amada: “para se ter uma cidade é preciso estar longe dela. [...] É te-la por dentro, emoldurada... [...]. É tê-la assim como se tem uma dor no peito” (p.69).
Hildeberto apresenta n’A Comarca das Pedras um alargamento progressivo que caminha do regional para o social; do social para o religioso e do religioso para a abstração do mundo interior, tecido de imprecisões e de reminiscências, sonho e nostalgia. Este poeta é assim, identificado com o sentimento que o inquieta e o acomete, é também bastante expressivo na exposição e permanência de suas imagens insistentemente invocadas. Isso tudo é a MAGIA DE AMAR!

(Artigo publicado no Correio das Artes. João Pessoa, Domingo, 07 de Setembro de 1998. p.06)

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