UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

sábado, 20 de dezembro de 2008

Análise crítica do romance Tipos de Rua - Bárbara de Fátima

N'Os Tipos de Rua, o autor Juarez Moreira Filho pôde criticar todo um sistema, analisando as proporções e a consciência de seus medos e problemas, a repressão da liberação sexual, a conduta e atuação de mulheres como esposas, mães, prostitutas e filhas. Os homens como elementos fortes e dominadores, mas fracos diante deles mesmos. O autor está sempre empregando no processo de re-escrever o mundo. Como sábio parodista e parafraseador, Juarez nos mostra na sua criatividade imaginativa, a eloqüência de um escritor que não somente escreveu sobre isto, mas como uma testemunha dos fatos reais.
No agir como Deus, todo o processo torna-se mais fácil. O romance para quem ainda não o leu, apresenta vários tipos de rua: o Sô Bacana que num momento de intenso devaneio saiu do rio, nu e correu para a cidade com os peixes traíra na mão. O João da Rua, cuja mulher D. Laika foi morta por ele porque manteve um romance com o médico recém-chegado doa Capital Dr. Carlos. A D. Carmem, mulher virtuosa e religiosa, considerada por muitos por ter um filho Fogoiozinho diferenciado dos outros. Ligeirinho, o namorado da Rosinha que era menor de idade e ele não poderia desposá-la. A Maria Louca coitada, mulher de pouco juízo, mãe de Calango Tango que não sabendo notícias do filho que ela enviara para a Capital para ser doutor, morreu amarrada ao “tronco do pequizeiro” (p.55) após dois anos. O Zé Diógenes que foi procurar pelo Calango Tango na cidade grande e acabou sendo roubado pelos rapazes que tinham se prontificado a “olhar a sua mala” (p.53) e, ao prestar queixa no Posto de Polícia da rodoviária, acabou “preso por suspeita de vadiagem. Sem emprego, sem documento” (p.54). O Chico da Pretinha, amante de Duchinha que para escapar da navalha do marido, Raimundo Barbeiro, afirmou dentro da Barbearia que era “bicha” (p.53). Zé Preá, famoso matador de onça, quando questionado pelos fiscais do IBAMA afirmou ser o maior mentiroso da região de Dueré. O Zé Calundu que tomou o maior porre de Caipirinha e os meninos gritavam (água + limão + açúcar) e ele respondia: “Não misture não, senão eu mato”. O Jóia era aquela alma humilde e paciente, era o maior sofredor de Dueré e sempre achando tudo jóia. Maria Madalena, que segundo Juarez era “a negra faceira que calçava 46”(p.89), e que tinha uma cultura marcante e afirmava com convicção que “ é o Sol que gira em torno da Terra, ele se move” (p.91) e que a forma da Terra, segundo ela “é achatada como um prato e cercada de água por todos os lados” (p.92). A falta de descrição do Soldado Barroso e do Soldado Espinha Quebrada que mataram o Negão, filho do Senhor Mundico, “um rapaz bom” (p.96) que vivia apitando nas ruas de dia e de noite. Por possuir uma “pedra de cristal” (p.97) foi morto pelos dois soldados e um “casal de araras” (p.98) presenciou tudo e muito tempo depois, quando eles estavam “nos festejos religiosos de Dueré” (p.98) eles se entreolharam e Barroso perguntou ao Espinha Quebrada, se não seriam “estas araras que assistiram nóis sangrar e enterrar o Negão?” “É elas mermas” (p.99). Assim, o rapaz encarregado da limpeza correu à Delegacia de Polícia e ambos foram presos. Outro caso de ignorância e corrupção é o do Cabo Venta Chata, quando deu voz de prisão a Severino, um menino da escola que escreveu na lousa: “Das Dores você é boazuda!”. No caminho para a prisão foi batendo papo e ao chegar foi chute no traseiro, pescoção. O Cabo Venta Chata mostrou-se como sendo um “covarde de primeira” (p.107). Outro tipo de rua é o Lelé da Cuca, boêmio, mangava de tudo e de todos, mas surpreendeu a todos quando o Deputado Federal Dr. Souza chegou a Dueré com propósitos de ser reeleito. Assim sendo, o Deputado comprou uns instrumentos para a formação de uma fanfarra da qual Lelé da Cuca era o Maestro. Na ocasião, Lelé da Cuca fez um “lindíssimo discurso de improviso. [...] Quem diria, um tipo de rua!” (p.115)
Segundo Carino Bernardes, autor do Prefácio de Tipos de Rua, nos afirma que “Juarez é aquele que canta a sua aldeia, e, nesse caso, Juarez Moreira Filho se enquadra de maneira plena e acabada”. Não podemos concordar com o termo “acabada”, ao contrário, quem descreve os mais variados tipos de rua não pode se considerar acabado, e, sim, em processo de exímia lapidação semântica e vocabular. Escrever uma coletânea de vários contos é uma tarefa gratificante, ainda mais quando relacionados a Dueré.
N’Os Tipos de Rua são apresentados dramas individuais ou coletivos, onde o narrador, muitas vezes desaparece, para, como um Deus, entrelaçar as falas dos personagens através de um imenso reino encantado. É a uniformidade do narrador, é a eloqüência do poeta, é a expressividade do escritor.
Dueré é eternizada nos seus encantos e artifícios materiais pelo autor ora como derivada de substantivos abstratos: amor, saudade, dor, mas também se concretiza “é a própria vida, dos tipos, que começa a chegar ao fim e vem atropelando o folclore e a cultura popular com risos escancarados” (p.13). E nessa espiritualidade materializada, vão-se fluindo as suas reminiscências “com a rédea solta e o chicote colocado à anca do tempo, vou traquejando esses tipos de rua com a dor que me esfacela” (p.13).
É, sem sombra de dúvida, uma ligação muito forte, talvez inesquecível e penetrante que o faz cantar poeticamente da Dueré onde para “ter uma cidade é como se ter o fogo que o amor arrasta e que a terra abrasa” (Barbosa Filho, p. 81). Aquele amor que não tem tempo definido nem se contenta com a simples presença, pois o quer na memória, quer o pulsar do coração, quer estar dentro de nós, plenificando-nos com o êxtase da imortalidade.
Juarez não buscou aliterações e assonâncias raras e suas figuras de estilo descrevem suas emoções sem aprisioná-las nas estruturas formais e suas sensações mais íntimas, porém, humanas, demonstram no seu tom discursivo a sua psicologia do amor, da dor, o calor que humanizam coisas metaforizadas como se gente fosse.
Segundo Chagas (p.55), “para que serve a arte? Para representar uma idéia, reconstruir uma lembrança, reconstruir a ruína ou revelar o enigma. Uns gostam outros não. Picham. Veneram. É através da arte que se representa aquilo que o homem é. O real no símbolo. A sociedade. A história. É também a arte da busca do sentido, apresentado/representando a agonia, o medo, a singeleza, a poesia”.
Dueré é assim, sem muitos enigmas a serem desvendados, encanto que se mesclam na dádiva natural que revela aos seus mais íntimos admiradores, os seus filhos naturais ou não, é para eles que o seu coração transborda em exercícios poéticos traduzidos por um Juarez que a chama amorosamente e a define como sendo e mostrando as qualidades metafísicas sendo traduzidas em admiração, meditação e um entusiasmo acentuadamente nativista.
É pura magia! A magia de amar infinitamente, doando-se em palavras sublimadas pelo afago dos tipos de rua, pelo ritmo cadenciado das consoantes e pela sonoridade vocálica que os definem.
Dueré, segundo a ótica juareziana, é um símbolo de um ponto nostálgico pendente, uma lembrança que não se omite e fica solta e transborda de um fluxo contínuo de palavra poética sempre palpável, extensa e desafiadora que é um convite à exploração poética. Não havendo interrupção do discurso, por um lado, e a presença marcante da disciplina vocabular, por outro, emprestam a esses tipos de rua um extraordinário efeito nostálgico. Até observamos que, em alguns tipos ressalta a atividade lúdica, que não foge ao trocadilho, mas, pelo contrário, o cultiva: “Maria Louca não era uma alienada mental a bem da verdade. No entanto, mudava de direção constantemente” (p.49-50).
As metáforas do autor denotam o seu temperamento reservado e observador, diríamos até bastante intuitivo. O visual que elas apresentam faz Juarez sair de si mesmo para ocupar-se do que está ao seu redor, evitando, assim, o efeito de aprofundar-se numa serena individualidade introvertida, que vai adentrando-se calmamente à medida que ele se exterioriza. As metáforas representam, algumas vezes, as sensações auditivas. São exemplos: “[...] em cama-de-sola rangedeira” (p.30), “dançando a música no compasso do tempo” (p.60), “turva lembrança emurchecida” (p.111), “tristeza ingrata dos caminhos mortos” (p.112).
Como não poderíamos deixar de inserir na análise deste romance regional, a língua apresentada por Juarez é descrita de forma simples. Sua cadência sertaneja ressalta os períodos de construção curtos, na forma direta, do tipo popular, cuja sintaxe e semântica exaltam e envolvem todo o processo narrativo. É toda a força de Juarez, que provém do seu interior e transborda da intertextualidade, que ele apresenta ao retratar os seus tipos de rua, principalmente a linguagem regional que é bastante acentuada no personagem de Zé Diógenes na carta para Maria Louca. Essas variações lingüísticas colocam Juarez em confronto intertextual com Mark Twain (1835-1910) autor de As Aventuras de Huckleberry Finn (1883), Negro Jim escapa da escravidão com o amigo Huck Finn, um garoto branco, em uma balsa e, longe da civilização, eles tentam superar as dificuldades, passando a cultuar o advento de outros valores distorcidos pela distinção de classes inferior e superior, pelo racismo, pelo preço a ser pago pela sua liberdade, etc.
Juarez, ao descrever os seus tipos de rua, tentou através da ingenuidade interiorana de Zé Diógenes, onde mais uma vez, o meio ambiente, a natureza entra freqüentemente em cena, a fim de descrever a união do trágico na dualidade campo x cidade, da prepotência do Deputado Federal Dr. Souza, do atrevimento do Dr. Carlos, amante de D. Laika, conscientizar todo o seu povo que passiva ou ativamente lutava por melhorar as condições de vida e as retratações desses acontecimentos transpostas para a ficção superaram as expectativas no tocante ao desempenho dos seus personagens. Os tipos de rua são apontados por Juarez como representantes das mais variadas experiências humanas dentro de um universo literário completo e definido. Uma verdadeira harmonia entre os homens, os animais, as coisas. A natureza sendo uma personagem forte e audaciosa, extasiava a tudo e a todos com a profundidade de um grande sentimento.
Não podemos diferenciar o homem do escritor, porque Juarez é um narrador de sua terra, de sua gente, de suas raízes nordestinas. Instintivamente, exaltou os problemas da Região Norte e os transpôs para um estilo literário que até hoje encanta os seus leitores, o romance regionalista. Sua ficção, a bem da verdade, é bastante realista. Nada de invenção. Tudo é poesia. Nos tipos de rua tudo é lembrança retratada com minúcias de detalhes. O autor medita, mas é o personagem quem sofre, quem humanamente se movimenta, entrando em sintonia com o eu-lírico do autor. É o grito do homem, da terra. É o feitiço do encantamento que se apodera do autor Juarez Moreira Filho e o faz cantar e encantar através de exacerbadas provocações que intervêm energicamente no íntimo de cada brasileiro, iluminando assim, com sua arte, todo o legado de um povo.
É a revelação de quem sente a alma e faz cantar o coração transbordar em descrições vivas e palpitantes. Por ser nordestino, também acreditou na fidelidade de seu Deus. Aquele Deus que é bastante contrativo na Sua essência: que castiga por ser justo e que perdoa por ser misericordioso.
Já não se pode separar o homem do escritor, que está buscando como tantos outros regionalistas, as várias modalidades de entendimento junto àqueles que lhe foram tão caros. Um escritor fiel que transportou para a ficção pessoas tão comuns n’Os Tipos de Rua, seres reais, com sentimentos resguardados por excesso de timidez ou extravagantes como um amor do tipo Dr. Carlos e D. Laika. Tudo é paixão retratada com traços cristalinos na sutileza da efemeridade e aprisionada na efervescência da memória. É abstração do sentimento concretizado na prosa de Juarez Moreira através da busca incansável do que ele considera o seu maior apreço: seu chão, a terra que lhe concedeu esses dons imaculados de enorme transformação literária, ao lado da oportunidade de mostrar a grandeza do ser humano que é.
Juarez Moreira fez da obra literária uma oração, um canto de louvor a seu povo. Procura como poucos a comunhão entre o dizer e o escrever, e está sendo recompensado de maneira infinita por seus temas que, ao se manifestarem influentes e criativos, o transformam em autêntica autoridade literária, dentro de um estilo que lhe é singular, e, para muitos, inatingível.

Um comentário:

dado disse...

Barbara devido ao fato de vc trer removido o selo e o iframe da associacão internacional dos blogueiros da net,em 24 horas o seu link será removido da associação. caso resolva reinstalar o selo informe atravez de comentario a reposição do mesmo para o meu blog. Um abraço Dado