UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

sábado, 5 de setembro de 2009

Do Amor


Muitos vos têm falado do amor.
Tendes ouvido o poeta, que vos fala do amor
nos olhos de uma mulher;
o sacerdote, que prega o amor a Deus;
e o construtor, que descobre traços de amor
em belas edificações.

E cada um deles diz apenas
uma parte da verdade;
porque não fala sobre o Amor,
mas sobre as suas próprias concepções do amor.
Eu, entretanto, vos digo que o amor é isso
e muito mais:
- é o raio de sol, que acaricia o vosso rosto
e não podeis reter
- é o mais lindo dos vossos sonhos e a maior
das vossas mentiras
- é o pior dos vossos despertares e a maior
das vossas verdades.

O amor não existe em si, apenas dentro de vós.
E insistis em procurá-lo fora de vós,
onde não pode ser encontrado.
Encarais o amor como a um ser vivo,
e o dissecais para adorar
o seu cadáver empalhado;
- e procurais entendê-lo, sem saber que nele
nada há para ser entendido
- e julgais que o Amor é o vosso direito e
a obrigação dos outros.

Como a felicidade e a tristeza,
o amor é um estado de espírito; e,
por assim ser, não se pode pretender eterna
e invariável a sua intensidade.
É quando vos preocupais com a duração
do vosso amor, que estais começando
a destruí-lo; é quando quereis obrigá-lo
a sobreviver, que lhe estais roubando
o alento e causando a sua morte.
Porque duas coisas são fatais ao amor:
a obrigação de amar e o direito de ser amado.

Porém, aquele que passar por este mundo
sem conhecer o Amor,
será como se a ele não houvesse vindo;
como a chuva que se evapora antes
de tocar o solo e volta a ser nuvem,
sem que tenha sido realmente chuva.
Aquele que não ama é como a árvore firme,
que produz frutos sem sabor.
E aquele que vive apenas em função
dos seus amores é como o tronco
que se encanta com a beleza
da planta parasita e sucumbe ao seu
abraço colorido e mortal.

Um sonho só é realidade enquanto
não deixa de ser sonho.
Pois, se o Artista que traçou a realidade
é o mesmo que coloriu os sonhos,
é certo que não usou os mesmos pincéis.
Assim como não podeis viver sem
os sonhos e a realidade,
também não podereis amar sem alternar
felicidade e sofrimento.

E, se deixardes de amar, é certo que não
conhecereis a qualquer dos dois.
Que não vos preocupem as definições do amor,
nem a sua duração; amai,
pois o amor vos reconduz a um Ser maior,
que vos encontra no sofrimento
ou na felicidade.

Muitas vezes, o vosso medo de sofrer
é o próprio sofrimento,
e vos impede de ser felizes.
A ventura que vos desejo,
como aos filhos mais queridos,
não é a bolsa repleta,
nem a mente saturada de conhecimentos,
nem mesmo a saúde perfeita.
É que possais conhecer o Amor;
e, mesmo sem entendê-lo,
o possais guardar junto a vós,
ainda que apenas por um dia e uma noite.
Porque então percebereis o brilho das estrelas
e sereis capazes de ouvir a canção do mar
e sentir o perfume das flores.
E o brilho, a canção e o perfume não vos
chegarão pelos órgãos do corpo,
mas através de vossas almas.
Podereis, ao fim da caminhada,
partir deste mundo sem o remorso
de quem se hospeda em casa alheia e trai
Aquele que o abrigou.

E, ao renascerdes no mundo maior,
tereis nos lábios um sorriso de confiança
e no coração uma prece de agradecimento.
Então, os anjos vos receberão entre eles.
E talvez vos seja dado
ver a face de Deus.

(Do livro Na Trilha do Profeta)

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