UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Agora vou escrever...


Agora vou escrever ao correr da mão:
não mexo no que ela escreve.
Esse é o modo de não haver defasagem entre o instante e eu:
ajo no âmago do próprio instante.
Mas de qualquer modo há alguma defasagem.
Começa assim:
como o amor impede a morte,
e não sei o que estou querendo dizer com isto.
Você tornou-se um eu.
Como traduzir o silêncio
do encontro real entre nós dois?
Tais momentos são meu segredo.
Que estou fazendo ao te escrever?
Estou tentando fotografar o perfume.
Para te escrever eu antes me perfumo toda.
Nossa pele tem memória
e o olfato guarda as recordações dos cheiros,
dos odores que marcaram as descobertas de uma vida.
Cheiro de chuva no fim de tarde,
cheiro de bolinho de chuva coberto de açucar e canela,
cheiro de infância.
É possível voltar no tempo
e fazer do tempo um grande ir
e vir de instantes que se foram,
conjugados com aqueles que ainda hão de vir
com os novos sentidos despertos…
E quando o perfume é de mulher?
Cheiro de outro é aquela outra coisa
que se mistura ao nosso
entranhando-se como parte de nós mesmos.

(Autora: Clarice Lispector)

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