UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

sábado, 19 de setembro de 2009

Auto-retrato



Se me contemplo,
tantas me vejo,
que não entendo quem sou,
no tempo do pensamento.

Vou desprendendo elos que tenho,
alças, enredos...
E é tudo imenso...
Formas, desenho que tive, e esqueço!

Falas, desejo e movimento
- a que tremendo,
vago segredo
ides, sem medo?!

Sombras conheço:
não lhes ordeno.
Como procedo meu sonho inteiro,
e após me perco,
sem mais governo?!

Nem me lamento nem esmoreço:
no meu silêncio há esforço e gênio
e suave exemplo
de mais silêncio.

Não permaneço.
Cada momento é meu e alheio.
Meu sangue deixo,
breve e surpreso,
em cada veio
semeado e isento.

Meu campo, afeito
à mão do vento,
é alto e sereno:
AMOR, DESPREZO.
Assim compreendo
o meu perfeito acabamento.

Múltipla, venço
este tormento
do mundo eterno
que em mim carrego:
e, una, contemplo
o jogo inquieto
em que padeço.

E recupero
o meu alento
e assim vou sendo.
Ah, como dentro
de um prisioneiro
há espaço e jeito
para esse apego
a um deus supremo,
e o acerbo intento
do seu concerto
com a morte, o erro...

(Voltas do tempo - sabido e aceito - do seu desterro...)

(Autora: Cecília Meireles)

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