UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

domingo, 23 de agosto de 2009

Os Estatutos do Homem


Ato Institucional Permanente

Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade,
agora vale a vida, e de mãos dadas
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II

Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm
direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas, e
que os girassóis terão direito a abrir-se
dentro da sombra; e que as janelas devem
permanecer, o dia inteiro, abertas para o
verde, onde cresce a esperança.

Artigo IV

Fica decretado que o homem não
precisará nunca mais duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:

O homem confiará no homem como
um menino confia em outro menino.

Artigo V

Fica decretado que os homens estão
livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar a couraça
do silêncio, nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa com seu
olhar limpo, porque a verdade passará a
ser servida antes da sobremesa.


Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos, a
prática sonhada pelo profeta Isaías, e o
lobo e o cordeiro pastarão juntos, e a comida
de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII

Por decreto irrevogável, fica estabelecido o
reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor sempre
foi e será sempre não poder dar-se amor
a quem se ama, e saber que é a água que
dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que, sobretudo, tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida, uso do
traje branco.
Artigo XI

Fica decretado, por definição, que
o homem é um animal que ama, e que
por isso é belo, muito mais belo que
a estrela da manhã.

Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido, tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes com uma
imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:

Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.


Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro não
poderá nunca mais comprar o sol
das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma
espada fraternal para defender o direito
de cantar a festa do dia que chegou.

Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante a liberdade será
algo vivo e transparente como um fogo
ou um rio, e a sua morada será sempre
o coração do homem.

(Autor: Thiago de Melo)

Nenhum comentário: