UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Parolagem da Vida

Como a vida muda. Como a vida é muda.
Como a vida é nuda. Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.  
Tudo que se perde mesmo sem ter ganho.
Como a vida é senha de outra vida nova
que envelhece antes de romper o novo.
Como a vida é outra sempre outra, outra
não a que é vivida.
 Como a vida é vida ainda quando morte
esculpida em vida.
Como a vida é forte em suas algemas.
Como dói a vida  quando tira a veste
de prata celeste.
Voltar...
Como a vida é isto misturado àquilo.
Como a vida é bela sendo uma pantera
de garra quebrada.
Como a vida é louca estúpida, mouca
e no entanto chama a torrar-se em chama.
Como a vida chora de saber que é vida
e nunca nunca nunca leva a sério o homem,
esse lobisomem.
Como a vida ri a cada manhã
de seu próprio absurdo e a cada momento
dá de novo a todos uma prenda estranha.
Como a vida joga de paz e de guerra
povoando a terra de leis e fantasmas.
Como a vida toca seu gasto realejo
fazendo da valsa um puro Vivaldi.
Voltar...
Como a vida vale mais que a própria vida
sempre renascida em flor e formiga
em seixo rolado peito desolado
coração amante.
E como se salva a uma só palavra
escrita no sangue desde o nascimento:
amor, vidamor!

(Autor: Carlos Drummond de Andrade)

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