UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Oração do Milho



Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso, nasce e cresce na terra descuidada. 
Ponho folhas e haste e se me ajudares Senhor, 
mesmo planta de acaso,
 solitária, dou espigas e devolvo em muitos grãos,
 o grão perdido inicial, salvo por milagre, que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo.
 E de mim, não se faz o pão alvo, universal.
O Justo não me consagrou Pão da Vida, 
nem lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos 
que trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre.
 Alimento de rústicos e animais do jugo.
Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
 Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e amiga dos que 
começam a vida em terra estranha.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal, agradecida a Vós, Senhor, 
que me fizeste necessária e humilde.
SOU O MILHO.

(Autora: Cora Coralina)

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