UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A Canção das Lágrimas de Pierrot



I

A sala em espelhos brilha
Com lustres de dez mil velas.
Miríades de rodelas
Multicores - maravilha! -

Torvelhinham no ar que alaga
O cloretilo e se toma
Daquele mesclado aroma
De carnes e de bisnaga.

E rodam mais que confete,
Em farândolas quebradas,
cabeças desassisadas
Por Colombina ou Pierrete


II

Pierrot entra em salto súbito.
Upa! Que força o levanta?
E enquanto a turba se espanta,
Ei-lo se roja em decúbito.

A tez, antes melancólica,
Brilha. A cara careteia.
Canta. Toca. E com tal veia,
com tanta paixão diabólica,

Tanta, que se lhe ensangüentam
Os dedos. Fibra por fibra,
Toda a sua essência vibra
Nas cordas que se arrebentam.


III

Seu alaúde de plátano
Milagre é que não se quebre.
E a sua fronte arde em febre,
Ai dele! e os cuidados matam-no.

Ai dele! e essa alegria,
Aquelas canções, aquele
Surto não é mais, ai dele!
Do que uma imensa ironia.

Fazendo à cantiga louca
Dolorido contracanto,
Por dentro borbulha o pranto
Como outra voz de outra boca:


IV

- "Negaste a pele macia
À minha linda paixão
E irás entregá-la um dia
Aos feios vermes do chão...

"Fiz por ver se te podia
Amolecer - e não pude!
Em vão pela noite fria
Devasto o meu alaúde...

"Minha paz, minha alegria,
Minha coragem, roubaste-mas...
E hoje a minh'alma sombria
É como um poço de lástimas..."


V

Corre após a amada esquiva.
Procura o precário ensejo
De matar o seu desejo
Numa carícia furtiva.

E encontrando-o Colombina,
Se lhe dá, lesta, . socapa,
Em vez de beijo um tapa,
O pobre rosto ilumina-se-lhe!

Ele que estava de rastros,
Pula, e tão alto se eleva,
Como se fosse na treva
Romper a esfera dos astros!...

(Autor: Manuel Bandeira)

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