UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

quinta-feira, 24 de março de 2011

Sacrilégio



Como a alma pura,
que o teu corpo encerra,
podes, tão bela e sensual, conter?
Pura demais para viver na terra,
bela demais para no céu viver...
Amo-te assim! - exulta, meu desejo!
É teu grande ideal que te aparece,
oferecendo loucamente o beijo,
e castamente murmurando a prece!
Amo-te assim, a fronte conservando
a parra e o acanto, sob o alvor do véu,
e para a terra os olhos abaixando,
e levantando os braços para o céu.
Ainda quando, abraçados, nos enleva
o amor em que me abraso e em que te abrasas,
vejo o teu resplendor arder na treva
e ouço a palpitação das tuas asas.
Em vão sorrindo, plácidos, brilhantes,
os céus se estendem pelo teu olhar,
e, dentro dele, os serafins errantes
passam nos raios claros do luar.
Em vão! - descerras úmidos, e cheios
de promessas, os lábios sensuais,
e, à flor do peito, empinam-se-te os seios,
ameaçadores como dois punhais.
Como é cheirosa a tua carne ardente!
Toco-a, e sinto ofegar, ansiosa e louca...
Beijo-a, aspiro-a...mas sinto, de repente,
as mãos geladas e gelada a boca:
Parece que uma santa imaculada
desce do altar pela primeira vez,
e pela primeira vez profanada
Embora! hei de adorar-te nesta vida
já que, fraco demais para perde-la,
Não posso um dia, deusa foragida,
Ir amar-te no seio de uma estrela.
Beija-me! Ficarei purificado
com o que de puro no teu beijo houver;
ficarei anjo, tendo-te ao meu lado:
tu, ao meu lado, ficarás mulher.
Que me fulmine o horror desta impiedade!
Serás minha! Sacrílego e profano,
Hei de manchar a tua castidade
e dar-te ao lábios um gemido humano!
E à sombria mudez do santuário
preferirás o cálido fulgor
de um cantinho da terra, solitário,
iluminado pelo meu amor...

(Autor: Olavo Bilac)

Nenhum comentário: