UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

quinta-feira, 24 de março de 2011

Não Pode Existir Amor Sem Verdadeira Troca



Não te lembras de ter encontrado na vida
aquela que se considera um ídolo?
Que havia ela de receber do amor?
Tudo, até a tua alegria de a encontrares,
se torna homenagem para ela.
Mas, quanto mais a homenagem custa, mais vale:
ela saborearia melhor o teu desespero.

Ela devora sem se alimentar.
Ela apodera-se de ti para te queimar à sua honra.
Ela é semelhante a um forno crematório.
Ela, na sua avareza, enriquece-se de várias capturas,
julgando encontrar a alegria nessa acumulação.
E não acumula mais do que cinzas.
Porque o verdadeiro uso dos teus dons
era caminho de um para o outro, e não captura.

Ela verá penhores nos teus dons
e abster-se-á de tos conceder em paga.
Na falta de arrebatamentos que te satisfariam,
a falsa reserva dela far-te-á ver que
a comunhão dispensa sinais.

É marca da impotência para amar,
não elevação do amor.
Se o escultor despreza a argila,
terá de modelar o vento.

Se o teu amor despreza os sinais do amor
a pretexto de atingir a essência,
o teu amor não passa de um palavreado.
Não descuides as felicitações,
nem os presentes, nem os testemunhos.

Serias capaz de amar a propriedade,
se fosses excluindo dela, um por um,
como supérfluos, porque particulares demais,
o moinho, o rebanho, a casa?
Como construir o amor, que é rosto lido
através da urdidura, se não há urdidura
sobre a qual escrever?

Sem cerimonial de pedras, não haveria catedral.
Nem haverá amor sem cerimonial em vistas do amor.
Eu só atinjo a essência da árvore se ela modelou
lentamente a terra segundo o ceriomonial das raízes,
do tronco e dos ramos.

Nessa altura, ela é una.
Tal árvore e não uma outra.
Mas aquela acolá desdenha as trocas,
que a haviam de fazer nascer.
Ela procura no amor um objecto capturável.
E esse amor não tem significado algum.

Ela julga que o amor é presente que ela pode fechar nela.
Se tu a amas, é porque ela te conquistou.
Ela fecha-te nela, convencida de enriquecer.
Ora o amor não e tesouro a conquistar,
mas obrigação de parte a parte, fruto
de um cerimonial aceite,
rosto dos caminhos da troca.

Jamais essa mulher nascerá.
Só de uma rede de laços se pode nascer.
Ela continuará a ser semente abortada,
poder por empregar, alma e coração secos.
Ela há-de envelhecer funebremente, entregue
à vaidade das suas capturas.
Tu não podes atribuir nada a ti próprio.
Não és cofre nenhum. És o nó da diversidade.
O templo, também é sentido das pedras.

(Autor: Antoine de Saint-Exupéry)

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