UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A dor que mais dói

Trancar o dedo numa porta dói.
Bater com o queixo no chão dói.
Torcer o tornozelo dói.
Um tapa, um soco, um pontapé, dóem.
Dói bater a cabeça na quina da mesa,
dói morder a língua, dói cólica,
cárie e pedra no rim.
Mas o que mais dói é saudade.

Saudade de um irmão que mora longe.
Saudade de uma cachoeira da infância.
Saudade do gosto de uma fruta
que não se encontra mais.
Saudade do pai que já morreu.
Saudade de um amigo imaginário
que nunca existiu.
Saudade de uma cidade.
Saudade da gente mesmo,
que o tempo não perdoa.
Dóem essas saudades todas.
Mas a saudade mais dolorida é a saudade
de quem se ama.
Saudade da pele, do cheiro, dos beijos.
Saudade da presença,
e até da ausência consentida.
Você podia ficar na sala e ele no quarto,
sem se verem, mas sabiam-se lá.
Você podia ir para o escritório e ele para o dentista,
mas sabiam-se onde.
Você podia ficar o dia sem vê-lo,
ele o dia sem vê-la,
mas sabiam-se amanhã.
Mas quando o amor de um acaba,
ao outro sobra uma saudade que ninguém
sabe como deter.
Saudade é não saber.
Não saber mais se ele continua s
e gripando no inverno.
Não saber mais se ela continua pintando
o cabelo de vermelho.
Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu.
Não saber se ela foi na consulta com o
dermatologista como prometeu.
Não saber se ele tem comido frango assado,
se ela tem assistido as aulas de inglês,
se ele aprendeu a entrar na Internet,
se ela aprendeu a estacionar entre dois carros,
se ele continua fumando Carlton,
se ela continua preferindo Pepsi,
se ele continua sorrindo,
se ela continua dançando,
se ele continua surfando,
se ela continua lhe amando.
Saudade é não saber.
Não saber o que fazer com os dias que ficaram
mais compridos,
não saber como encontrar tarefas que lhe
cessem o pensamento,
não saber como frear as lágrimas diante
de uma música,
não saber como vencer a dor de um silêncio
que nada preenche.
Saudade é não querer saber se ele está
com outra,
e ao mesmo tempo querer.
É não querer saber se ela está feliz,
e ao mesmo tempo querer.
É não querer saber se ele está mais magro,
se ela está mais bela.
Saudade é nunca mais saber de quem se ama,
e ainda assim, doer.

(Autora: Martha Medeiros)

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