UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

quinta-feira, 23 de abril de 2009

LIVRO: Mimesis



Category: Books
Genre: Literature & Fiction
Author: Erich Auerbach

Como contemporâneo de uma geração que revelou grandes estudiosos alemães-judeus de literaturas, línguas e culturas, o filólogo Erich Auerbach (1892-1957) tornou-se uma das mais significativas referências nos estudos de cunho hermenêutico e de exegese literária do Ocidente. Isso devido, principalmente, após o fato de ter publicado em 1946 sua obra monumental intitulada Mímesis. Os que fazem parte dessa vetusta tradição intelectual podem, pela importância e qualidade dos seus trabalhos, serem aqui elencados de modo irrefutável: a começar pelo sábio prussiano Karl Lachmann (1793-1851) – fundador da nova crítica textual –; os filólogos Friedrich Christian Diez (1794-1876), Ernst Robert Curtius (1820-1885), Karl Vossler (1872-1949) e Leo Spitzer (1887-1960); o glotólogo e romanista Hugo Schuchardt (1842-1927); a exegeta berlinense Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925) e o lingüista neogramático Wilhelm Meyer-Lübke (1861-1936), só para destacarmos os mais expressivos eruditos que marcaram um grande momento do estudo das chamadas Humanidades. Há muito tempo considerado um livro clássico entre os estudiosos das letras, trata-se da obra-prima do sábio berlinense. Mímesis compreende, entre outros e relevantes aspectos, uma abordagem original da questão da representação da realidade e do foco narrativo em obras emblemáticas da literatura ocidental, partindo de textos antigos da cultura greco-latina até contemplar autores da modernidade como os irmãos Jules e Edmond de Goncourt e a novelista e ensaísta britânica Virginia Woolf. De forma excepcional, com Erich Auerbach e seu famoso compêndio, a crítica literária no século XX experimentou enorme avanço quanto à metodologia de análise textual. Isso porque o exegeta germânico soube, como poucos estudiosos da matéria, estabelecer uma fecunda confluência da pesquisa histórica e filológica com a estilística para o esclarecimento da obra literária. Com sua erudição, pôde também desenvolver a necessária e pertinente conexão entre filologia e literatura, o que permitiu enorme avanço qualitativo em suas análises, adotando um método caracterizado pela possibilidade de junção do diacronismo com o sincronismo que, no seu caso, e de forma original – voltamos a destacar – só contribuiu para uma leitura atual e esclarecedora dos grandes textos e excertos da literatura do Ocidente. Tal preocupação se reflete no reconhecimento da importância da edição crítica, numa consistente historiografia da literatura através da adoção de um estilo que aprofunda aspectos filológicos pertinentes ao trabalho de análise de questões de poética e de retórica, indispensáveis para uma maior compreensão dos autores estudados em sua dimensão cultural. Neste tocante, são palavras do próprio sábio berlinense:

A necessidade de construir textos autênticos se faz sentir quando um povo de alta civilização toma consciência dessa civilização e deseja preservar dos estragos do tempo as obras que lhe constituem o patrimônio espiritual. (AUERBACH, 1976, p.12).

Eis, de modo cristalino, sua consciência da urgência e importância do método filológico no esclarecimento do texto e da tradição que o envolve. É bem possível que devamos compreender, mediante tal questionamento, a razão pela qual o autor de Mímesis permaneça gerando profícuos debates entre os que, pertencendo a campos diversificados do conhecimento humanístico, nunca deixaram de se interessar pela sua obra monumental. Malgrado a importância dos trabalhos de Erich Auerbach para o estudo da literatura do Ocidente seja inconteste, no Brasil – em termos gerais – é possível verificar um interesse ainda incipiente pelo conhecimento mais abrangente de sua obra e, de modo especial, por Mímesis. Talvez devido a certas dificuldades técnicas na compreensão dos seus ensaios – (e aqui não podemos desconsiderar dificuldades de tradução, sua enorme erudição e a diversidade de questões envolvidas em seu método de abordagem textual) – não se tenha ainda atingido um grau satisfatório de abordagens que contemplem, de forma regular e freqüente, seu legado intelectual. Principalmente entre as novas gerações acadêmicas. Dada a amplitude da produção de estudos universitários na área de Humanidades em nosso país, não são muitos – nos dias de hoje – os que se interessam por sua obra nas universidades brasileiras. As causas dessa relativa indiferença talvez possam ser explicadas pela ausência de uma tradição, no âmbito de nossas academias, que se volte de modo mais enfático para os estudos no campo da Filologia Românica, com seus métodos de crítica textual em sua feição clássica. A quantidade de estudos a respeito do legado intelectual do sábio berlinense ainda não representa contingente de vulto, necessário a um debate mais consistente e aprofundado sobre sua contribuição à historiografia e sociologia literárias, das relações entre a filologia e a análise do discurso, de aspectos que envolvam línguas e culturas, além da necessidade e urgência de abordagens textuais cujos parâmetros se pautem em edições críticas criteriosas que levem em conta as complexas relações entre língua e representação literária. Considerando o raio de abrangência da disciplina filológica, para a leitura aprofundada de Mímesis torna-se fundamental, pelo menos num primeiro momento, o conhecimento de línguas, estilística, historiografia literária, sociologia da literatura, análise do discurso e de teorias do foco narrativo. Na tentativa de compreensão do moderno método hermenêutico de Erich Auerbach é imprescindível o domínio interdisciplinar do leitor que, ao analisar sua obra modelar, terá que empreender descomunal labor de estudo nas áreas do saber referidas. Obra obrigatória para quem se dedica aos estudos filológicos e estéticos sobre a literatura do Ocidente. Trabalho de erudição e agudeza crítica, escrito no exílio, na Turquia, para escapar ao terror nazista, e que constitui um exemplo da possibilidade de conexão entre a análise diacrônica (fenômenos sociais/artísticos que ocorrem através do tempo) e sincrônica (estuda o sistema sígnico num dado ponto no tempo, sem considerar sua história) e da fecundidade de sua aplicação, para uma leitura atualizada dos grandes textos da criação literária.

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