UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

terça-feira, 17 de março de 2009

Retalhos da memória - Bárbara de Fátima


O cansaço venceu. Tommy decidiu se deitar na rede do lado bem ventilado da casa. A rede bem novinha e aconchegante. O sol forte dourava a terra. E ele ficou quieto e pensativo, todavia o balançar calmo, porém constante da rede lembrando o movimento do barquinho nas ondas do mar o fizeram adormecer. E o barquinho o levou a lugares nunca antes apreciados: o lar dos pais, que ele não conhecia tão bem, mas que vivera lá durante anos, sem ter valor e sem receber nenhum respeito. Os seus pais, sempre presentes e ainda mais ausentes. Porque um apoio, sem suporte amoroso e emocional embasados na dedicação e na confiança de nada vale. Não adiantou a presença física. Não adianta dar as ferramentas para enfrentar a vida, se, no entanto, não ensinar a usá-las. O mundo não se responsabiliza pelo mau uso das regras adquiridas. Entre uma onda e outra, ele avistou a rua onde subira tantas vezes a mesma ladeira íngreme e pedregoso, que sempre o levou a lugar nenhum, porém lhe deu as noções para respeitar e aceitar as diferenças dos seus iguais. Sabendo como era difícil acatar tantas desigualdades, pensamentos voltados para o dia a dia e nunca para as necessidades básicas do vizinho ao lado.
O barquinho continuou e passou pela porta de mulheres amadas e desejadas por ele que de uma forma ou outra lhe disseram não, que fugiram de compromissos sérios sem ao menos uma palavra de apoio, para tornar menos triste e mais confortante e aceitável a despedida, a recusa. O sentimento de perda e de derrota. Mais adiante meio sonolento ele viu os filhos provenientes dessas relações mal trabalhadas, mal elaboradas, mal vividas. Filhos da não concepção positiva. Até porque quando se ama percebe-se que o amor é um sentimento maravilhoso, porém que necessita de movimento, não podendo permanecer estático. E para que o amor tão abstrato revele-se é necessário que se manifeste através de atos e de palavras. Precisa de que haja sedução, toque.
E o barquinho, de repente, diminuiu seus movimentos e na praia estava uma criatura iluminada pela palha de um coqueiro que havia caído na areia branca. Quem seria ela? Ele não a conhecia, parecia ser um espectro de pessoa humana. E era. Bela como a noite estrelada, pronta para um lual. Que visão incrível! Por outro lado, nada o havia tocado com tanta ternura, o mais doce dos sentimentos que, ao contemplá-la sentiu uma atmosfera de liberdade total, que o acalmou e temperou uma paixão viril impregnada de amor com a magia de um encanto divino. Quem seria ela? Enlouquecido de paixão, com aquele olhar, uma palavra amável, um carinho, tentou se aproximar. Tentou inutilmente alcançá-la. Sabia que ela viria a ser o sal de sua vida afetiva. Temperando-lhe o sabor, o gosto perfeito de seu ser. Queria fazer-lhe confissões emocionantes, trocar as mais excitantes carícias, sentir o encanto do primeiro encontro, as confidências mais secretas, o toque com as mãos. Acima de tudo, ele queria o êxtase do primeiro momento... Nesse instante, o barquinho parou completamente. Até o mar sentiu essa corrente que o fluir de uma busca sinaliza. No seu sono, ele descobriu surpreendentemente que um já não consegue viver sem o outro. Agora não poderão ser dois, e sim apenas um. Um rio fluindo no outro, juntos, confundidos. Assim se configura a identificação irreversível e perene. É a confluência de dois em um. Como passe de mágica, uma onda mais forte balançou fortemente o barquinho e o espectro extraordinário desapareceu.
O barquinho continuou o seu passeio mansamente. Adiante ouviu um alto-falante que anunciava a venda de peixes, lagostas, etc. Frutos do mar. Contudo, não dava para ele ver com clareza o que mais havia no barco. Chegou mais perto e percebeu que havia uma espécie de rede de pescador igual à veste usada pelo espectro da mulher amada. Ficou tão nervoso que ao movimentar-se no barco, a água lhe molhou o rosto soltando sobre si vários tipos de plantas do mar. Acordou muito atordoado e percebeu que estava na sua rede preferida. Havia apenas dado um cochilo e que o sargaço que o mar havia deixado na sua face era tão somente a varanda de sua rede que o vento suavemente tinha deixado cobrir os seus olhos.

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