UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Harpa esquisita


Dói-te a festa feliz da verdade da vida...
Tanges da harpa, em teu sonho, almas e cordas, cantas,
Bóiam-te as notas no ar, a asa no azul diluída
E, assombrados, reptis – homens, não! tu levantas!
E apupilam-te a frente as mil pedras agudas
De ódios e ódios a olhar-te... E és um rei que as avista,
No halo, do Amor, que tens! se em colar as transmudas
Vais – um dervixe persa, o manto azul – Artista!

Inda olhar adormido abre, e é de ocre, e avermelha!...
Vem colar-te ao colar...e, oh! tua harpa esquisita
Plange... flora a zumbir, minúscula, que imita
A abelheira da Dor, em centelha e centelha.
E é a sombra... E o instrumento, a gemer, iluminado,
Como que à noite estrela um núbio corvo... E lindo
(Inda que as asas não no terás ao lado)
Por que os pétalos d’ouro, a haste de prata, abrindo,

Um lírio de ouro se alça?...Os passos voam-te, pelas
Ribas...Oh! que ilusões da flor, que tantaliza!
Sobe a flor? Sobes tu e a alma nas pedras pisa?....
Pairas... e o busto a arfar – longe, vela sem norte.
Negro o céu desestrela, o seio arqueado: escuta.
No amoroso oboé solveja um vento forte
E, alta, em surdo ressoo, a onda betúmea e bruta.

A ânsia do mar, lá vem, esfrola-se na areia...
Seu líquido cachimbo é mágoa acesa, e fuma!
E chamas a onda: “irmã!”. E em fósforo incendeia
Na praia a onda do mar, ri com dentes de espuma.
De ametista, em teu sonho, uma antiga cratera
Mal te embebe – alegria! – alvos dedos de frio,
Eis se emperla o rosto e a prantear vês, sombrio
A onda crescer, rajar-se em brutal besta-fera!

Olhas... E, soluçoso, à música das mágoas
Amedulas o Mar e amedulas a Terra!
A sombra aclara... E é ver a dança verde de águas
E arvoredos dançando ao coruto da serra!
Gemes... Dedando o Azul as magras mãos dos astros
Somem, luzindo... Ao longe, esqueleta uma ruína
Em teu sonho a anervar argentina, argentina...
De ilusões, no horizonte, ossos brancos... são mastros!

Quente estrias a alma, à frialgem, nas cousas...
Que bom morrer! manhã, luz, remada sonora....
Pousas um dedo níveo às níveas cordas, pousas
E és náufrago de ti, a harpa caída, agora.
Ah! os homens percorre um frêmito. Num choro...
Move oceânica a espécie, amorosa, amorosa!
Mais que um dervixe, és deus, que morre, a irradiosa
Glorificação de ouro e o sol de ouro... à paz de ouro.

(Autor: Pedro Kilkerry)

Nenhum comentário: