“Os meus dias são mais velozes do que a lançadeira do tecelão, e chegam ao fim sem esperança. Lembra-te de que minha vida é um sopro; os meus olhos não tornarão a ver o bem. Os olhos dos que agora me vêem não me verão mais; os teus olhos estarão sobre mim, mas não serei mais. Tal como a nuvem se desfaz e some, aquele que desce à sepultura nunca tornará a subir. Nunca mais tornará à sua casa, nem o seu lugar o conhecerá mais. Por isso não reprimirei a minha boca; falarei na angústia do meu espírito, queixar-me-ei na amargura da minha alma.” (Jô 7:6-11)
Orfeu era filho da musa Calíope e, segundo alguns, do deus Apolo, de quem ganhou sua primeira lira. Desde pequeno aprendeu a tocá-la com perfeição, e logo tornou-se um músico e poeta extremamente habilidoso. As melodias que saíam de sua lira eram inebriantes, encantadoras, e o som era tão maravilhoso que os animais mais ferozes não resistiam, reunindo-se mansamente ao redor do rapaz para escutar. As árvores e plantas curvavam seus galhos para pegar os sons no vento, os pássaros paravam de voar e até mesmo as pedras perdiam um pouco de sua dureza. Durante a expedição dos Argonautas em busca do Velocino de Ouro, Orfeu usou sua música para encantar e silenciar as sereias, impedindo desse modo que seus companheiros fossem afetados pela melodia mortal das criaturas marinhas. Ele é o símbolo magistral da habilidade de encantar, seduzir, por vezes subjugar sem, entretanto, utilizar de palavras ou força para tanto. É o arquétipo de Escorpião, com sua melodia capaz de encantar e romper enigmas, sua capacidade de rasgar os véus que encobrem as realidades paralelas. Eurídice era uma ninfa auloníade, ou seja, associada aos pastos localizados em montanhas e vales (a palavra grega aulon significa ravina ou vale).
Os dois se apaixonam de um modo total, um amor tão forte que precisou ser selado com uma união definitiva e imortal, um casamento. O deus Himeneu, protetor das núpcias, foi convidado para abençoar a união, mas durante a cerimônia sua tocha fumegou, sinal de mau agouro. Ele pressente que uma tragédia recairá sobre os noivos, uma angústia de que a felicidade dos amantes durará pouco. Não suportando mais permanecer no local com suas tristes suspeitas, ele decide ir, mas Orfeu pede que ele fique, o que ele faz, mesmo sentindo a dor da separação do casal. A festa termina, e Eurídice, acompanhada de suas amigas ninfas, comemora e dança de felicidade nos campos próximos ao rio Pineios, na Tessália. Orfeu a aguarda no leito para consumar a união com o ato sexual, mais puro e íntimo símbolo de amor e unidade. O casamento, aqui, simboliza a integração entre os princípios masculino e feminino, a relação mais poderosa e representativa para Escorpião, que deseja mais do que tudo o contato profundo com o Outro.
Entretanto, os maus presságios de Himeneu se cumprem. O apicultor Aristeu passava por ali e, vendo-a banhar-se no rio completamente nua, sente um desejo violento de possuí-la. Ele a persegue, e Eurídice corre rapidamente pra fugir de sua investida. A mãe de Aristeu, a ninfa Cirene, assiste a tudo e, tomada de forte ciúme, transforma-se numa serpente venenosa e pica o calcanhar de Eurídice, que cai ao chão e poucos instantes depois morre. Sua alma desce silenciosamente aos subterrâneos dos Infernos, reino de Hades e Perséfone, residência final de todos os mortos. Na escuridão do Tártaro, ela chora a perda do amado. Orfeu, descobrindo seu corpo entre as árvores, fica desesperado de dor, tenta acordá-la, beija-lhe os lábios frios, canta suas doces melodias, mas nada trará Eurídice de volta. As ninfas companheiras da bela noiva vingam-se de Aristeu matando todas suas abelhas. Escorpião entrará em seu conhecido processo de morte, de purificação e transformação vital, necessária à renovação e perpetuação da vida. Os domínios de Hades representam o subconsciente do indivíduo, a transcendência do que é real e tangível, o reino do intocável, onde os mistérios da existência humana configuram-se como caracteres por vezes insolúveis, indecifráveis. É papel de Escorpião rasgar esse véu e expor o que é oculto, sombrio, incompreensível, e para tanto ele utilizará de seu dom nato para o entendimento do que está nas entrelinhas.
Orfeu chega aos portões da escura morada eterna, e depara-se com o monstruoso cão Cérbero, guardião imortal da entrada. O terrível animal de três cabeças percebe que tem diante de si uma alma em um corpo vivente, e late assustadoramente, rosnando para o herói, que imediatamente inicia uma seqüência de notas absolutamente inebriante em seu instrumento. Cérbero lentamente vai se acalmando, tornando-se tão manso quanto um cão doméstico, e por fim adormece, deixando a entrada livre para Orfeu. O herói passa então por multidões de fantasmas e miríades de almas atormentadas pelo sofrimento, gritando de dor e implorando por sua ajuda. Ele apenas passa entoando seus acordes, aliviando um pouco o horror lamentoso dos espíritos. A lição aprendida por Escorpião nesse ponto de sua descida ao inconsciente subterrâneo e que o doloroso processo de transmutação exige esforço, paciência e afinco, o que lhe é conferido pelo Modo Fixo. Para tanto, o indivíduo escorpiano não deve deixar-se levar por sentimentos corrosivos, como o ódio e a agressividade (Cérbero) e a depressão e recordação das coisas irresolúveis que já passaram (espíritos mortos).
Finalmente, o herói chega ao imponente trono de escuridão dos Imperadores dos mortos, Hades e Perséfone. O deus imediatamente irrita-se ao ver uma criatura viva em seus domínios, e ordena-lhe uma explicação. Orfeu lhe responde com uma canção, acompanhado de sua lira:
“Ó divindades do mundo inferior, para o qual todos nós que vivemos teremos que vir, ouvi minhas palavras, pois são verdadeiras. Não venho para espionar os segredos do Tártaro, nem para tentar experimentar minha força contra o cão de três cabeças que guarda a entrada. Venho à procura de minha esposa, a cuja mocidade o dente de uma venenosa víbora pôs fim prematuro. O Amor aqui me trouxe, o Amor, um deus todo-poderoso entre nós, que mora na Terra e, se as velhas tradições dizem a verdade, também mora aqui. Imploro-vos: uni de novo os fios da vida de Eurídice. Nós todos somos destinados a vós, por essas abóbadas cheias de terror, por estes reinos de silêncio, e, mais cedo ou mais tarde, passaremos ao vosso domínio. Também ela, quando tiver cumprido o termo de sua vida, será devidamente vossa. Até então, porém, deixai-a comigo, eu vos imploro. Se recusardes, não poderei voltar sozinho; triunfareis com a morte de nós dois.”
A atmosfera do local transformou-se. As almas derramavam lágrimas enternecidas. Tântalo, apesar da sede, não tentou mais conseguir água, apenas para ouvir o maravilhoso som; Íxion parou de girar sua roda de fogo; as danaides descansaram do trabalho de encher a caldeirão vazado; Sísifo deixou de subir a montanha com a pedra, sentando-se nela para escutar. Até mesmo as Fúrias derramaram lágrimas cheias de ódio pela dor que sentiam ao ouvir a música. Perséfone também emocionou-se profundamente, e por fim Hades cedeu, derramando lágrimas de ferro. O rei manda buscar Eurídice dentre as multidões que rodeavam o trono. Ela chega fraca, ferida, coxeando, mas um sorriso ilumina sua face mortalmente pálida ao ver o amado. Perséfone consente que Orfeu a leve, mas o adverte de que deveria caminhar à frente da esposa durante todo o percurso até a entrada, sem olhar-lhe o rosto em nenhum momento, caso contrário, Eurídice retornaria às sombras. O casal prossegue por passagens íngremes e obscuras, enquanto Orfeu tocava suas alegres melodias para inferir vida em Eurídice. Orfeu sente um forte desejo de olhar a amada, uma ânsia insuportável de abraçá-la e conhecer seus lábios novamente. Quase próximos da superfície iluminada, ele não resiste e vira-se para trás, temendo que ela não estivesse seguindo-o. Encara por um momento a linda face fantasmagórica da esposa. Eurídice é imediatamente arrebatada, engolida pelas sombras mórbidas do Hades pela segunda vez, soltando um último suspiro de amor. E assim Escorpião chega a seu objetivo simbólico, ou seja, a transformação. Entretanto, deve entender que de nada adianta a conclusão do longo e profundo processo se este não for efetivado de modo gradual, lento e cuidadoso. Os extremos a que chega Escorpião podem levá-lo a perder repentinamente tudo o que construiu com tanto ardor, e para tanto deverá aprender a habilidade de adiar o ardor do momento de integração total, em que ele ressurgirá como a fênix das cinzas.
Essa última parte do mito associado a Escorpião nos lembra que, na busca de nossos objetivos e metas, devemos manter a fidelidade, persistência e tenacidade representadas por Orfeu, que não sucumbe às investidas das Mênades, os desejos e sentimentos das camadas obscuras da personalidade. No fim, entendemos que na vida não há caminho de retorno consciente, ou seja, o que está feito está consumado, e não pode ser revertido. Eurídice estava morta, e não retornaria jamais. Por isso, é necessária a transformação através da morte simbólica de Orfeu, a superação das coisas irreversíveis, e o entendimento profundo e inquestionável que apenas as experiências da vida podem trazer. É interessante perceber que, na Grécia Antiga, havia uma religião de formas um tanto heréticas, o Orfismo que, segundo se diz, teria sido fundado pelo próprio Orfeu, após o seu retorno do Mundo dos Mortos. Era uma religião de acentuadas características escorpianas, já que relacionava-se principalmente à morte, à ressurreição e à reencarnação, elementos que, inquestionavelmente, são as mudanças e transformações mais significativas e enigmáticas que existem.
(Fonte: obsessivedream.wordpress.com)
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