UMA NÉVOA DE OUTONO O AR RARO VELA

Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

(Autor: Fernando Pessoa)

  

  

 

 


 

terça-feira, 31 de julho de 2012

Neurastenia



Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Um sino dobra em mim Ave-Maria!
Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza...
O vento desgrenhado chora e reza
Por alma dos que estão nas agonias!
E flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem as asas pela Natureza...
Chuva... tenho tristeza! Mas porquê?!
Vento... tenho saudades! Mas de quê?!
Ó neve que destino triste o nosso!
Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto que eu não posso!!...

(Autora: Florbela Espanca)

Leveza



Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garaganta,
mais leve.

E o que se lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.

E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.
E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.

(Autora: Cecília Meireles)

Se


Se não houvesse mais palavras...
nenhuma maneira de falar,
eu ainda poderia ouvir você...
Se não houvesse mais lágrimas...
para expressar minha saudade,
eu ainda sentiria sua falta...
E mesmo que o Sol se recuse a brilhar...
e mesmo que uma poesia não rimar,
você terá meu coração até o fim dos tempos!
Toda minha vida, eu tenho esperado 
por tudo o que você faz por mim...
você tem aberto meus olhos 
e mostrado como amar sem egoísmo.
Eu sonhei com isso milhares de vezes, 
antes em meus sonhos não imaginava 
que poderia te amar tanto assim.
Eu lhe darei meu coração até o fim dos tempos.
Você é tudo que eu preciso, meu amor!
E mesmo que o Sol se recuse a brilhar...
e, que as estrelas se recusem à noite iluminar...
você ainda teria meu coração, para sempre, sempre...
Porque tudo o que eu preciso é você, meu amor.
Você é tudo o que eu quero... eu sempre irei te amar!

(Autor Desconhecido)

Não me inquieto



Não me inquieto
quando não recebo as respostas
das perguntas que não fiz.
Eu me conformei
em reservar alguma coisa
de ti para saber depois.
Um pouco de nosso amor
será póstumo.
É recomendável
não descobrir todos os segredos.

(Autor: Fabrício Carpinejar)

Mar vagabundo



Há um mar em mim.
Um mar de águas revoltas.
Nuvens pesadas circulam passageiras
Areias, em fileiras, atiram-me ao fundo
quase sempre certeiras.

Há um mar em mim
E eu tantas vezes nada entendi:
da cor que me veste olhos d'água
e do vento que me sopra à maré baixa.

Pois há um mar em mim
E eu não tive sequer escolhas
Não pude dizer (ao mar)
que parasse com esses cantos sombrios
Nem que me deixasse à não-mercê de tais desafios.

Por que esse mar é fora da lei
Não sabe o que é sorte, nem teme solidez
Tudo sente, nada sofre e me move à embriaguês.

Por que esse mar é poço sem fundo
Quanto mais arrasta, mais revira tão doce mundo
Secando-me as águas claras em tons cinza profundos.
Isso tudo porque esse mar é vagabundo...

(Autora: Hercília Fernandes)

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Poema



De resto na ventania
sumiram sonhos. É a vida
não vivida só metade
no rosto metade amarga
que se escaveira de ruga
papel crepom e mais nada.

Vivi de sonho meu passo
que andei sozinha perdeu-se
desapontado vencido e não
houve braço amigo nem
carinho nem palavra
nem calor que fosse abrigo:
de resto na ventania
sumiram sonhos. É a vida.
(Autora: Ymah Théres)

Todas as águas dormem


Há uma hora certa,
No meio da noite, uma hora morta,
Em que a água dorme. 
Todas as águas dormem:
No rio, na lagoa,
No açude, no brejão, nos olhos d’água,
Nos grotões fundos.
E quem ficar acordado
Na barranca, a noite inteira,
Há de ouvir a cachoeira
Parar a queda e o choro,
Que a água foi dormir...
Águas claras, barrentas, sonolentas,
Todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
Fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
Nas placas da folhagem.
E adormece
Até a água fervida,
Nos copos de cabeceira 
dos agonizantes...
Mas nem todas dormem, nessa hora
De torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
E chorando, a noite toda,
Porque a água dos olhos
Nunca tem sono...

(Autor: Guimarães Rosa)

Novas Diagonais


Calejei-me: sou magna-impenetrável,
Psico-impermeável, tranquilizadoramente forrada de calos.
Estrela vermelha com nervos antiabalos.
Roí o tempo carrasco e insuportável,
Dias e dias quais eras de esferas solitárias:
Clausuras de saudade maçante entupindo artérias de silêncio.

Vomitei a dor famigerada, a tortura inquisitória,
Rasguei o véu cinzento do sacrifício:
Anestesiei-me de ti!
Pisoteei tua ausência descabida, alardeada como hospício:
Tornei não recorrente a retórica exasperante
Da tua boca úmida e insistentemente ausente.

Alargo as madrugadas em luas desfraldadas,
Disponível ao presente, até que outro rosto se apresente
E trace diagonais passionais na minha pele enluarada.
Teu tempo já é nada, vertente desfigurada,
Anulada na luz nascente de outra estrada.
Tantas vezes morri, já tanto renasci de superar-me!

(Autora: Stella de Sanctis)

Falar/Dizer Poesia


Tenho para mim que ler poesia
 com a voz não pode ser nunca
 só conhecê-la e dá-la a conhecer.
Ler poesia é torná-la nossa, 
que a voz, tanto como os olhos,
 quer se queira quer não, 
é espelho da alma.
Ler poesia é como representar, 
é inventar quem fala,
 é reinventar um poeta
 e recriar o momento de escrever.
Por isso é importante escolher o que se lê, 
não ler qualquer coisa, amar o que se diz, 
decidir que palavras vão passar a fazer parte de nós 
e serão daí em diante também nossa memória 
e nos irão ajudar também a escrever
 e a ler novas palavras, a estar com os outros.

(Autor: Luís Miguel Cintra)

Do saber...


Não existe ocupação 
tão agradável como o saber;
o saber é o meio de nos dar a conhecer,
ainda neste mundo,
o infinito da matéria,
a imensa grandeza da Natureza, 
os céus, as terras e os mares.
O saber ensinou-nos a piedade, 
a moderação, a grandeza do coração;
tira-nos as nossas almas das trevas e 
mostra-nos todas as coisas, 
o alto e o baixo, o primeiro, 
o último e tudo aquilo que se encontra no meio; 
o saber dá-nos os meios de viver bem e felizmente; 
ensina-nos a passar as nossas vidas 
sem descontentamento e sem vexames.

(Autor:  Marco Túlio Cícero - Estadista, orador e filósofo romano)

Das Coisas


A bengala, as moedas, o chaveiro,
a dócil fechadura,
essas tardias notas
que não lerão meus poucos dias
que restam,
o baralho e o tabuleiro,
um livro e dentro dele
a esmagada violeta,
monumento de uma tarde
por certo inolvidável e olvidada,
o rubro espelho ocidental em que arde
uma ilusória aurora.
Quantas coisas,
limas, umbrais, atlas, copos, cravos,
nos servem como tácitos escravos,
cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além do nosso olvido
e nunca saberão que já nos fomos.

(Autor: Jorge Luís Borges)

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,

Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

(Autor: Luís Vaz de Camões)